Cumprindo seus ciclos astrais com a maestria de sempre, seguindo a rota cósmica sob as leis e a ordem do Universo, a lua novamente surgiu cheia, no céu límpido sobre o mar azul, em um magnífico fim de tarde, no seu segundo dia de plenitude.
Continuou a subir suave como a flauta do Largo do Concerto em Lá maior , de Touchemoulin, brilhante como os olhos de Audrey Hepburn, doce como a voz de Mirella Freni e harmoniosa como toda a Criação. Sobre o mar, fagulhas como beijos cintilavam e, com as estrelas, na areia espraiava luz. Sobre as ondas dançavam brisas ao som de marulhos e farfalhos. Que coisa linda...
No dia seguinte ao “claro da lua” que varou a madrugada de todos os ângulos da abóbada celeste, tudo cede lugar a uma nova alvorada, renovando-nos os espíritos e as esperanças, acendendo-nos a percepção para a grandiosidade do que é regido pela sagrada natureza. Eis que sobe o Sol, robusto, potente, esparramando energia por tudo e por todos, serenamente, silenciosamente, gratuitamente…
Aproveitando a manhã, saímos a caminhar com os pés na areia úmida, e logo nos deparamos com as mais privilegiadas aves do céu: os urubus! Há quem os rejeite, e deles se enoje. Para alguns, são só poesia. Não incomodam, voam em paz e ajudam a limpar o ambiente em que vivem.
Há grupos amigos, quiçá famílias que habitam as falésias em plenitude e harmonia. Momentos existem em que pousam na borda da alta encosta, ou bem se colocam nos pontos estratégicos de contemplação. De onde assistem às mais requintadas obras de arte que no mundo há. Espetáculos que, de costume, desfilam gratuitos à sua frente, com a música que o mar lhes toca em concerto perene e suave, ali soando, encantando, dia após dia. O balé das ondas é outro belo espetáculo, de doce magia. Um palco que se veste com mantos diversos a cada alvorada, aurora ou luar, com chuva ou com sol, de noite ou de dia.
Há tempos que observamos estes privilegiados pássaros voejando sobre as encostas, às brisas que vêm do Atlântico. Pairam e levitam sem nenhum esforço. Brincam no ar, e como plumas flanam. Ninguém os perturba, ninguém os agride. Nem quando o mar lhes serve o banquete, que só para eles parece gostoso, comem tranquilos e partem de volta a se aninhar na bela falésia. Eles, que chamam de abutres, são aves afortunadas.
Um domingo desses, avistamos lá em cima da chapada uma turma apreciando a paisagem. Curiosamente não estavam a espreitar nem saborear as delícias servidas pelo mar, que comumente lhes aprazem os instintos, pois, ali, só a brisa, ou quem sabe o cenário interessava. Vez por outra, dois ou três alçavam voo, flutuavam no ar, sem o menor esforço, com movimentos deliciosamente suaves e harmônicos. Coisa de fazer inveja aos mais virtuosos atletas de “Asa Delta” que saltam da Pedra da Gávea, com asas que não são suas, mas que lhes dão uma efêmera ideia de liberdade.
Como encantadora era aquela reunião dominical desportista do amigável grupo de aves negras, tão discriminadas pela poesia humana... Quanto lirismo costumam emprestar àqueles céus!
Metallicados32 / Bones64 / Sam May
Aterrissamos os olhos e os sonhos, e voltamos. O sol já começava a descer pelo outro lado da abóbada anilada, e agora, na diagonal, dava às espumas das grandes ondas de preamar uma brancura ainda maior. A magia do instante tornava-nos engrandecidos por estar ali, pertencer àquilo tudo, principalmente ao mundo dos urubus. Como os invejamos! Seu lugar, seu luar, seu viver e todo o mar onde sabem, na mesma medida, amar e voar.