A criação artística é, em última análise, uma mentira, mas uma mentira com pé na realidade, mentira plausível, por mais absurdo que nos possa parecer o seu resultado. Mentira plasmada na realidade, como uma possibilidade de criação e marcada pela tensão, afinal, como disse Cecília Meireles, no poema “Reinvenção”, “a vida só é possível reinventada”
(Vaga música, in: Obra poética, Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1987, p. 195):
A vida só é possível
reinventada.
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
pelas águas, pelas folhas...
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas
de ilusionismo... — mais nada.
Mas a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vem a lua, vem, retira
as algemas dos meus braços.
Projeto-me por espaços
cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
da lua, na noite escura.
Não te encontro, não te alcanço...
Só — no tempo equilibrada,
desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
Só — na treva,
fico: recebida e dada.
Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
reinventada.
Vejamos como Cecília Meireles trata a tensão, mudando de um tom lírico amoroso, para um lírico dramático, ao enfocar os momentos que antecedem a execução de Tiradentes, no belíssimo poema “Fala Inicial” de Romanceiro da Inconfidência (Obra poética, p. 405-7):1. Não posso mover meus passos
por esse atroz labirinto
de esquecimento e cegueira
em que amores e ódios vão:
– pois sinto bater os sinos,
percebo o roçar das rezas,
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação;
– avisto a negra masmorra
e a sombra do carcereiro
que transita sobre angústias,
com chaves no coração;
– descubro as altas madeiras
do excessivo cadafalso
e, por muros e janelas,
o pasmo da multidão.
2. Batem patas de cavalos.
Suam soldados imóveis.
Na frente dos oratórios,
que vale mais a oração?
Vale a voz do Brigadeiro
sobre o povo e sobre a tropa,
louvando a augusta Rainha,
– já louca e fora do trono –
na sua proclamação.
3. Ó meio-dia confuso,
Ó vinte-e-um de abril sinistro,
que intrigas de ouro e de sonho
houve em tua formação?
Quem ordena, julga e pune?
Quem é culpado e inocente?
Na mesma cova do tempo
cai o castigo e o perdão.
Morre a tinta das sentenças
e o sangue dos enforcados...
– liras, espadas e cruzes
puras cinzas agora são.
Na mesma cova, as palavras,
O secreto pensamento,
as coroas e os machados,
mentira e verdade estão.
4. Aqui, além, pelo mundo,
ossos, nomes, letras, poeira...
Onde, os rostos? onde, as almas?
Nem os herdeiros recordam
Rastro nenhum pelo chão.
5. Ó grandes muros sem eco,
presídios de sal e treva
onde os homens padeceram
sua vasta solidão...
6. Não choraremos o que houve,
nem os que chorar queremos:
contra rocas de ignorância
rebenta a nossa aflição.
7. Choramos esse mistério,
esse esquema sobre-humano,
a força, o jogo, o acidente
da indizível conjunção
que ordena vidas e mundos
em polos inexoráveis
de ruína e de exaltação.
8. Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes,
por eterna escuridão! (p. 405-407)
Poema descritivo, em versos heptassilábicos ou redondilhos maiores, em que se verificam versos brancos e rimas toantes, mas também uma regularidade de rimas consoantes em –ão, em geral a cada quatro versos. O estilo abre-se para uma perspectiva mais lírico-dramática do que propriamente épica, apesar do inegável tom épico do poema como um todo, com a voz do eu-poético procurando refletir sobre o passado esquecido menos pela força do tempo do que pela cegueira das pessoas.
Buscando imergir no passado, o eu-poético revela o drama e a angústia dos fatos ainda presentes na sua memória, sintetizando os acontecimentos no confronto entre amor e ódio, na expressão de sentimentos confusos. Paralisado e desorientado num “atroz labirinto/de esquecimento e cegueira”, o eu-poético vai delineando cenas e fatos, a partir dos ecos da memória, abrindo o caminho para o tema principal, a condenação e a execução. Ao ambiente da execução (estrofes 1 e 2), seguem-se questionamentos sobre os fatos, que revelam uma situação paradoxal, como veremos a seguir (estrofe 3 e 4). O mais importante dos acontecimentos é a execução de alguém por ordem de uma Rainha, diante de um povo pasmado. Sabe-se que o acontecimento se dá a 21 de abril, embora se omita o ano, e que a execução será por enforcamento. Metonimicamente, apresentam-se os implicados no movimento, levados à execução por ordem real: liras, espadas e cruzes – poetas, soldados e religiosos. Deliberadamente, o eu-poético omite nomes, mas eles estão lá, no jogo de re-velação que a linguagem literária proporciona: Tomás Antônio Gonzaga, Tiradentes, o cônego Luís Vieira da Silva, para citar os mais famosos. Por outro lado, o eu-poético revela que a violência é a responsável pelo drama que se chora; uma violência que leva à ruína das pessoas. O silêncio diante dos fatos contribui para que se viva, por sua vez, uma “eterna escuridão”.
O contexto do poema nos dá as condições para entender o que se passa: trata-se do ápice do movimento libertário frustrado, em Minas Gerais, a que se deu o nome de Inconfidência Mineira: a execução de Tiradentes, em 21 de abril de 1792, por ordem de Dona Maria I, rainha de Portugal. O poema se compõe numa atmosfera de silêncio, solidão, pasmo e contradições. Não se encontram nomes ou rostos ou herdeiros. O eu-poético retoma o drama, busca compreender os fatos, lamenta o silêncio e a cegueira ainda reinante, após tanto tempo...
Nessa atmosfera dramática, apenas se ouve o badalar do sino, em dobre, representado pela assonância das rimas em –ão, anunciando a morte iminente do acusado. Ressonância a que se misturam as inquietantes perguntas das estrofes 3 e 4, cujas respostas mostram o paradoxo da situação, que joga numa vala comum castigo e perdão, palavras e secretos pensamentos, coroas e machados, mentira e verdade. Das perguntas a criar um contexto de contradições sobressai a metáfora da Inconfidência Mineira como “intrigas de ouro e de sonho”: a abundância do ouro, gerando ganância, ambição e exploração, também geraria o sonho de liberdade. Emerge desse sonho de liberdade a figura de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, sobre quem recaiu toda a culpa. Levado à forca, esquartejado, pedaços expostos na estrada Rio-Minas, casa destruída, terreno salgado, descendentes amaldiçoados... Nada disso, no entanto, esclarece o fato, só contribuindo para torná-los ainda mais misteriosos, jogando-os “em polos inexoráveis/ de ruína e de exaltação”. A ignorância deliberada dos fatos ou a paixão com que, às vezes, são discutidos contribuem para o esquecimento:
Ó silenciosas vertentes
por onde se precipitam
inexplicáveis torrentes
por eterna escuridão!
O poema “Fala Inicial”, desse modo, torna-se importante no contexto de Romanceiro da Inconfidência, servindo de introdução e síntese ao texto, delineando, paulatinamente, a figura de Tiradentes como personagem principal, em torno de quem se constroem mais dúvidas e incertezas do que o esclarecimento dos fatos. Isto se demonstrará com a expressão dos binômios culpa/inocência; vileza/nobreza; traição/lealdade; castigo/perdão; heroísmo/pusilanimidade; esquecimento/lembrança; passado/presente. Assim, Cecília Meireles reinventa o factual, que se encontra na história, dando-lhe nova vida, recriando uma possibilidade, na angústia de um condenado à morte, impotente, como é a angústia de todos nós, diante do arbítrio e da injustiça. O moldar a história ou o cotidiano, tornando-os não apenas um fato, mas possibilidades de vidas, de múltiplas vidas é o que faz a arte ser arte e, mais especificamente, a literatura ser literatura.