Escrever que ela marcou minha geração é uma obviedade dispensável. Porque ela fez mais que isso, pois não apenas marcou, mas moldo...

A ovelha negra que valia um rebanho

rita lee rock musica pop brasileira
Escrever que ela marcou minha geração é uma obviedade dispensável. Porque ela fez mais que isso, pois não apenas marcou, mas moldou minha geração, fazendo-nos ser aquilo que nos tornamos, ou seja, menos caretas, mais livres e – por que não? - mais felizes. Conduzindo-nos ao mundo novo, a partir dos anos 1950, tivemos Elvis, os Beatles, a Jovem Guarda e Os Mutantes. E, com estes, tivemos a ruiva e irreverente Rita Lee, diferente de tudo que então havia na MPB e na própria cultura brasileira. Quem não se surpreendeu – ou se espantou – com aquela garota sapeca provocando-nos com seu jeito, suas palavras e sua música com ares vanguardistas?

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Frames JL
Desde o início, apesar de branquela, fez questão de encarnar a ovelha negra, não só da família e da sociedade, mas de todo e qualquer agrupamento de que fez parte. Uma boa e saudável ovelha negra, anunciadora de tempos novos, de novas posturas e de novas ideias. Uma ovelha que não pretendia conduzir suas irmãs para o abismo nem para a toca do leão, e sim para planícies paradisíacas, onde todos pudessem bailar alegremente, sem algemas e mordaças (físicas e morais).

Contestadora? Claro que sim. Transgressora? Óbvio. E podia ser diferente? Claro que não. Não tivesse assumido deliberadamente a ovelha negra, teria sido apenas mais uma no rebanho, como tantas já merecidamente esquecidas. Prafrentex? Sem dúvida. Mas sem querer desencaminhar ninguém. Apenas alargando e iluminando caminhos, abrindo trilhas na densa floresta da mesmice, em direção ao novo, que, como cantou Belchior, “sempre vem”, a despeito de todas as resistências.

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@Marcia.Knupp
Pagou por isso? Sim – e caro. Foi difamada, censurada, perseguida e presa. Assim como seus companheiros mutantes, assim como Caetano e Gil, e tantos outros e outras que, das mais diversas formas, nos anteciparam belamente a chamada pós-modernidade. Foi verdadeiramente revolucionária. Não com uma metralhadora, mas com uma guitarra. Com seus cabelos e roupas coloridos. Com suas canções inovadoras e de alto astral, ao mesmo tempo dançantes e reflexivas, rimando, faceiramente, filosofia com alegria. Explicou-nos a diferença entre amor e sexo, prosa e poesia, e muitas outras. Fez mais: tornou-nos, de alguma maneira e em alguma medida, diferentes. Para melhor.

Irresistível Rita Lee. Com ela, como não se levantar para dançar, mesmo os tímidos? Como não cantar com ela, mesmo os desafinados? Ela cantava “Baila comigo” e nós a seguíamos desinibidos no baile que desejávamos sem fim. Nem que fosse em pensamento, como no meu caso, ovelha acanhada, incapaz de extravasamentos.

rita lee rock musica pop brasileira
Como os brasileiros em geral, vinha acompanhando sua luta com a implacável enfermidade. Quanta força, com o seu exemplo, ela não deu a outros e outras acometidos do mesmo mal. Corajosa e forte, manteve a alegria – ou pelo menos o bom humor – até o final. Há poucos dias, deu a público mais um volume de sua autobiografia. Na capa, sua foto com o rosto sofrido dos últimos tempos e a cabeça, provavelmente calva, coberta por um pano ao seu estilo. Coragem. Muita coragem.

Tiro o chapéu e faço justiça a Roberto de Carvalho, seu marido desde 1996. Companheiro de vida, de arte e de banda, esteve fielmente ao seu lado na alegria e na tristeza, na saúde e na doença, nas paradas de sucesso e fora delas. Segurou a barra e não deixou a peteca cair, para usar dois clichês muito adequados para o caso, mesmo quando a travessia do deserto foi mais árdua. Força. Caráter. Lealdade. Admirável Roberto.

Os fãs deram-lhe o título de “rainha do rock”. Mas será que reinou apenas sobre o rock? A mim parece que reinou sobre a música brasileira como um todo, independentemente do gênero. Sem falar que reinou no espaço mais amplo da cultura nacional,
rita lee rock musica pop brasileira
Mariana Moreira
como símbolo de mulher emancipada e lutadora, dona de seu nariz e de seu dinheiro. Feminista? Sim, mas ao seu modo, sem repudiar os homens, exceto os canalhas. Compôs canções e escreveu livros. Manifestou-se como cidadã, quando preciso. Viveu setenta e cinco anos intensamente, sem cara feia. Como diria o psicanalista e escritor Contardo Calligaris, viveu uma vida interessante e teve uma morte bonita. Bonita no sentido de que a finitude foi aceita e enfrentada com dignidade, como só os grandes espíritos conseguem fazer.

Recebi (recebemos) com tristeza a notícia de sua partida. Sentirei (sentiremos) falta de seu talento, de sua inteligência e de seu humor. Sem ela, mesmo aposentada, o Brasil torna-se mais sombrio e menos alegre. A mediocridade reina. A recente partida de Juca Chaves deixou-nos na mesma desolação. E o pior é não vermos substitutos à altura desses eleitos que partem. Onde outra Bibi, outro Erasmo, outra Gal?

Bem humorada e espirituosa até o fim, soube que batizou de “Jair” seu tumor mortal. Com muito orgulho e no melhor sentido, foi sempre uma assumida ovelha diferenciada que valia por um rebanho inteiro de iguais. Que seja recebida no paraíso com muita lança-perfume e nenhum auê.

E, sim, mesmo ausente, Rita, continuaremos com mania de você.


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  1. Texto, como de costume, excelente. Vai ao essencial. Mas neste, sente-se, uma inspiração devocional!

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  2. Obrigado, Múcio, pelo comentário. A inspiração talvez não chegue a ser devocional, mas há sem dúvida emoção e admiração pela velha Rita.

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