Uma gripe desgraçada pegou-me, há pouco, de jeito. Veio com todas as tosses possíveis, com dores de cabeça e de garganta tantas e tão fortes que nada mais disso deve ter sobrado para o resto do mundo, como assim me fizeram crer, na fase mais aguda, o desconforto e a desesperança.
Um parente médico ministrou o antibiótico, minhas duas avós trouxeram-me do céu a lembrança do gargarejo com água morna e sal, o neto cantou ao telefone “Mamãe, eu quero” e a coisa foi passando.
As velhas modinhas, acreditem, ajudam a combater as doenças de dentro para fora. Primeiramente, embalam o espírito e, em seguida, despertam o riso. “Mamãe, eu quero mamar”, assim cantava Carmem Miranda, em 1940, no filme “Serenata Tropical” e, depois dela, o resto do mundo. Há versão em inglês dessa composição nascida em 1936 da parceria de Jararaca com Vicente Paiva. Miguelzinho, no acalanto ao avô, caprichava no verso “dá a chupeta pro bebê não chorar”.
Finda a fase mais crítica, tomei um carão daquela que há 45 anos cuida de mim. “Lembra que eu te mandei tomar a vacina?”, perguntou entre a zanga e o alívio. Pensando bem, cuida há mais tempo. Assim o faz desde o início do namoro, três anos antes da nossa caminhada até o púlpito da Igreja Adventista, em 21 de maio de 1978, com as bênçãos ali, também, de um Juiz de Paz.
Eu a conheci quando ela e os muitos irmãos e irmãs (16 ao todo, não minto) pegaram o trem em Nova Cruz, Rio Grande do Norte, para o desembarque na minha rua. Tivemos a mesma calçada, em João Pessoa, cidade que os pais escolheram para os estudos e o trabalho da enorme filharada.
Três daqueles que seriam meus cunhados já me invadiam a casa paterna, do terraço à cozinha, nos idos de 1975. Minha mãe, sempre comedida nos gestos, abriu um sorriso largo ao responder sobre o paradeiro do meu irmão mais novo, a quem, certa vez, procuravam. Um deles me surpreendeu entre uma garfada e outra do almoço tardio, recusou meu convite para servir-se à mesa e estranhou o horário: “Agora? São quase cinco da tarde”. Minha mãe explicou que era sempre assim comigo, sem hora certa para acordar, dormir ou comer. Na mesma pressa como veio, aquele trio se foi com um “até logo” ao encontro do meu irmão.
“São amigos de Dorginho. São novos na rua”, disse dona Vininha antes que eu perguntasse qualquer coisa. Logo me acostumei ao jeito despachado daqueles meninos. Lembro, agora mesmo, de que nunca participei das peladas por eles promovidas em terreno baldio sem hora para acabar que não fosse a da faca do velho Neco nas bolas que batiam no seu telhado, ou caíam no seu quintal. O estudo e o trabalho em idade precoce já me deixavam sem tempo para isso.
Na verdade, era quase nenhuma a minha convivência com aquela família numerosa até que certa noite, numa folga do “Correio da Paraíba”, pus os olhos na menina branquinha, pequena e bonita que também me surpreendia à mesa. Dessa vez, eu era apanhado entre colheradas de uma sopa que apenas as mães sabem temperar tão a capricho. Não se fez de rogada com a oferta da dona da casa e sentou-se comigo. Ah, a vida e suas surpresas... Mal sabia eu que iria ter aquela companhia por 45 anos, tanto na mesa quanto na cama.
A garota do prato de sopa, aquela que me daria três filhos, já era uma espécie de mãe para os irmãos, alguns nascidos antes dela. Num finzinho de tarde, vinda das compras, desfez-se em lágrimas diante dos futuros sogros que já olhavam feio para mim. “O que foi, menina?”, perguntou-lhe dona Vininha. Resposta: “O café subiu de preço”. Isso significava o desfalque maior do salário magro em benefício do sustento da casa, pois se fizera um dos arrimos da família.
Se eu não casasse em razão do quanto era bela e amada, casaria apenas por isso. Outra vez, do modo mais natural, pôs-se a fatiar a carne que eu tinha no prato, exatamente, como minha mãe o fazia. Se eu escapasse do casório em virtude do episódio do café, não escaparia deste último encantamento. Que mulher é esta, capaz de traduzir tão profundamente seu carinho e sua dedicação a alguém em gesto tão simples, tão natural, tão espontâneo?
Essas coisas me dão um nó no juízo. O quê, ou quem, trama situações e oportunidades que juntam corpos e almas numa esquina qualquer do tempo? E pensar que hoje tudo seria diferente sem o caminho, o rumo que tomamos e os passos que demos. Uma vida, afinal de contas, é feita de inúmeras possibilidades. Mas ainda bem que foi assim.
Influenza... Eu daria este nome a alguma cantora lírica com o peito e a voz de Carmen, não a Miranda, mas a de Bizet, a cigana perversa que hoje parece bagunçar e reduzir o mundo àquela Praça de Sevilha. A julgar pelo suplício, a danada me pegou com suas quatro cepas.
Li numa dessas publicações médicas que o termo, de origem italiana, remonta ao Século 14, quando se acreditava na influência dos planetas sobre a saúde humana.
Estou bem e de volta ao trabalho depois de um feriadão perdido. É que tive o remédio correto, o gargarejo das avós, o acalanto do neto e uma mão de fada na testa febril.
Ei, Moça, acho que precisamos inventar algo para o 21 de maio. É data que já vem por aí. Os meninos gostarão de um jantarzinho conosco. A idade que temos, o convívio bem íntimo por décadas e a inutilidade do momento a sós com os propósitos de antigamente não nos permitem dispensar os três filhos, as duas noras e o neto. Escolhido da vitrine onde já estive, o presente será entregue por um portador de dez anos, não por acaso, meu cantor preferido. Contenha a curiosidade, pois não revelo mais do que isso. Até lá, vá aceitando essas mal traçadas linhas.
E gratíssimo por tudo.