Vejo como necessária a celebração da vida, da condição racional do homem, de sua possibilidade de escolhas. Mas bem sei do quão é d...

A condição humana

morador rua pobreza injustica fotografia padre antonio vieira
Vejo como necessária a celebração da vida, da condição racional do homem, de sua possibilidade de escolhas. Mas bem sei do quão é desigual esse direito de escolha em nossa sociedade.

Chega-se ao ponto de ser quase um absurdo discutir o já tão repisado tema do livre arbítrio após um olhar para a foto que motivou este texto.

Convido o leitor que passe o olho na imagem, deixe que ela se fixe, que ela o veja e seja vista, que ela turve os seus olhos e suas certezas, suas verdades.

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Vitor Nogueira
Em seu sermão sobre São Roque, o Padre Antônio Vieira nos diz que “em todo ato, em cada ser humano habitam muitas verdades”. Falo sobre as verdades que essa foto de Vitor Nogueira me despertou.

É impossível não pensar no aniquilamento, no apocalipse, “no lugar de toda pobreza”, nos algoritmos da soberba, na força centrífuga dos muros, no “deus mercado”, na impassibilidade crescente da artificialização da inteligência, na indigência, na condição humana.

Antes de minha tentativa de tecer em palavras a indignação que a foto me provocou, eu gostaria de revisitar o texto escrito pelo padre Antônio Vieira.

Em um determinado momento, ele nos diz que após retornar de uma longa peregrinação, para sua cidade natal de Montpellier, São Roque não foi reconhecido pelos herdeiros de seus bens.

E indaga Antonio Vieira,

[...] é realmente possível que o rosto de São Roque, que seus olhos tenham se modificado de tal forma que não tenha sido reconhecido? Eu digo não. Não foram os seus olhos que se modificaram, mas a riqueza, a fortuna é que modificaram os olhos dos seus parentes. A fortuna e a posição social modificam a percepção.

E segue Antônio Vieira nos dizendo

[...] que as pessoas veem no outro não a pessoa, mas a posição, a posição social. E quando eles chamam o amigo, chamam a posição, a condição; e quando precisam do amigo, precisam da sua posição e da sua condição social.

Voltemos à foto.

Agora leitor, proponho que não veja a foto apenas no seu celular, abra em uma tela de computador, vasculhe os seus detalhes, seus pormenores, todas as dores e metáforas que traz encrustadas em seus pixels. Aproveite e veja o que sempre está ao seu lado, mas que você não vê, ou já se habituou ao ponto de não perceber. As surpresas da foto estão nos detalhes que Vitor Nogueira captou de uma forma impressionante, pois os protagonistas, os moradores de rua, esses ditos “anônimos”, por si, fazem parte do cotidiano de nossas cidades.

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Vitor Nogueira
Comecemos de fora para dentro, do diálogo das bordas, o que chega e surpreende.

As bordas da foto se esparramam pela cidade, se convertem em uma distopia possível, palpável.

Vejam a figura sombria que mira o casal que dorme, ela se arrasta e espreita, o plástico negro transvestido de uma gárgula tombada dos céus, de um gigantesco morcego ̶ ou seria mais realista dizer tratar-se apenas da pura e simples figura simbólica de nosso desejo de morte.

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Vitor Nogueira
As mãos dos manequins, as nossas mãos tão passivas, indiferentes… E nós temos consciência, a possibilidade de julgar, delimitar o que podemos, as nossas reais necessidades. Temos o tato, mas não temos a disponibilidade de tocar quem não é capaz de nos devolver algo que possamos consumir.

Os baldes plásticos vazios, raspados até o fundo, a bolsa preta de marca desconhecida, a decência do lençol e cobertor, o afeto, a cor da pele, tudo isso importa, tudo significa.

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Moradores de rua (Vitória, Espírito Santo)
Vitor Nogueira
Mas há algo de perverso e definitivo nessa foto.

Nela fica claro que Homem é uma marca, algo que se compra, que se adquire ao entrar em uma loja, algo impossível para o que dorme sob uma marquise, algo que é fruto do consumo, algo além da carne, além da alma.

E te pergunto leitor, o que me diz do belo tênis sobre a bancada de espelho que reflete os rostos adormecido dos moradores de rua? Como poeta, deixo aqui a minha leitura dessa imagem:

Eis a marca do homem sobre a face dos despidos de soberba o mesmo que com a mão apedreja também pisa, quebra e esfarela as possibilidades parte o que reflete, e brilha e traz esperança (o mutilado se satisfaz com uma miragem da perfeição) Mas o homem já não se olha no espelho ele busca o sono como se entendesse que a paz é um recorte no abismo da existência.

E porque recorrer ao título a condição humana? É ao mesmo tempo uma homenagem à Hanna Arendt, autora de uma obra imensa que resgate o sentido de responsabilidade social e política de todos nós, e um apelo que reproduz em palavras o sentido dos registros fotográficos de Vitor Nogueira.

E digo isso porque entendo que a construção, a conquista, é o estar junto no desassossego dos dias, onde a imperfeição, o vício, o esforço, é o que nos faz parte do todo, preenchendo as faltas de uns em nosso oficio pelo outro.

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  1. Excelente, e a citação do sermão de Vieira foi magistral.

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  2. Que maravilha, Jorge. Parabéns, caro amigo.

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