"Aquele anjo velho, lembrando um norueguês com asas, havia caído no intramuros do alambrado “e as galinhas o bicavam em busca dos parasitas estelares que proliferavam nas suas asas”
A epígrafe que encabresta essa conversa foi extraída do conto “Um senhor muito velho com umas asas enormes”, de Gabriel García Márquez e grifada por Demétrio Diniz, com lápis marca-texto, em 17 de maio de 2010, dia do meu aniversário. O livro era “A incrível e triste história da cândida Erêndira e sua avó desalmada”, catalizador do realismo mágico, estilo que lastreou toda a produção literária do escritor colombiano. Lá se vão, portanto, doze anos do presente, e tudo ainda está muito verde em minha memória: a saudade do amigo, o livro como um indicativo de rota, plano de voo realizado por ele e a mim repassado como modelo. 0 deserto empestado de contrabandistas, missionários, índios, piratas, foragidos e garimpeiros, todos na maior secura por Erêndira, a garota acorrentada a uma cama e transformada em escrava sexual pela própria avó sem coração.
Pois bem, ao compulsar as páginas desse livro mais de dez anos depois, revisitei o deserto, inferno escaldante do escritor colombiano, e só não entrei na fila de Erêndira porque detesto filas. Também não fui ao velório de Demétrio, porque tenho horror a essa coisa rançosa chamada morte, tampouco comungo com os rituais que a civilização criou a pretexto de cultuá-la. Além do mais, abomino enterros e jamais assistiria a uma missa de corpo presente, nem ausente. Sou agnóstico. Sei que o morto pertence à família, sei também que se o tivessem consultado ele teria preferido uma cremação, como quis o intelectual Pedro Vicente. Prático e profilático, sem delongas e burocracias, a viúva recebeu um buquê de rosas frescas, um pequeno pote de louça e a incumbência de jogar as cinzas do cientista político, professor e membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras nas águas do rio Acre, no fundo da Amazônia, conforme o desejo dele.
Vi Demétrio pela última vez em Lisboa. Ele me disse por telefone que a janela do seu quarto dava para o Parque Eduardo VII, e a uma distância de 200 metros era vigiado pela estátua enorme do Marquês de Pombal, o sujeito que surrupiou o ouro do Brasil para financiar a reconstrução da cidade destruída pelo terremoto de 1755. Exímio gozador, Demétrio era “tirador de onda”, na expressão do jornalista e escritor Tácito Costa, seu amigo de esbórnia, cafés, de discussão de ideias e de troca de figurinhas. Saí caminhando pela avenida larga, à noite, sem risco de ser assaltado. E dei com ele já no saguão do hotel a me aguardar. Conversamos muito sobre Natal, culinária, literatura, e a doce vida que escorrega diariamente pelas ladeiras do Rossio, pelas instâncias do Chiado até desaguar no Tejo. Dia seguinte, o início das festas dos santos populares, ele voltou ao Brasil e eu ainda estiquei até o fim daquele mês minha permanência na terra de Saramago e Fernando Pessoa.
Poucos dias após o meu retorno, liguei para Demétrio e marcamos de nos encontrar para as resenhas da viagem. Foi quando tudo aconteceu. Corri para o hospital, o agravamento do seu estado de saúde caminhava para um quadro de morte encefálica. Dois dias depois, acabei amargando a constatação: morria da queda de uma rede a meio metro do chão quem um dia acordou de manhã e viu pela janela da aeronave que sobrevoava a cordilheira do Himalaia a mais de dez mil metros de altitude. Tal qual um velho albatroz, Demétrio era contumaz viajador. Poeta e contista de primeira grandeza, ele nasceu “um ano depois que terminou a Segunda Guerra, embora em Alexandria a guerra tenha sido tão longínqua e fora do seu cotidiano quanto a Lapônia, onde Papai Noel passeia com elfos e renas voadoras”, como ele próprio relata em orelha do seu último livro de contos “Pelo Cabo da Boa Esperança”.
Uma antologia dos melhores textos escritos em língua portuguesa ficaria capenga, lacunosa, se não tivesse um conto de Demétrio Vieira Diniz. Se alguém me pedisse uma sugestão eu citaria “Idas e Vindas de São Serapião” e ainda umas dez pequenas obras-primas, narrativas com qualidade e excepcional fabulação. Seu crivo analítico não perdoava, entre mortos e feridos pouca gente escapava nas unhas de sua caneta vermelha, bolchevique, cruel. “O olho do outro é importante”, dizia ele, com sabedoria, para reforçar a eficiência da usinagem em nossa oficina comum. Algumas vezes saía briga, motivada não raro pela vaidade, mas a intriga durava até a próxima sessão de carpintaria, quando o “você estava com a razão” acabava por triunfar. Mas o estrago já estava feito e ponto final.
Afora algumas avarias no fígado, em parte por conta da vida boêmia, nosso amigo era saudável e cuidadoso com o corpo. O diagnóstico de um câncer de próstata em 2015 o deixou baqueado, mas o serviço médico competente detonou o troço ruim sem a necessidade daquelas tenebrosas terapias químicas e de radiação, inclusive sem muitos estragos na sua velha conta poupança. E o mais importante: o tratamento não lhe deixou sequelas, não solapou do amigo aquilo que é da essência do fauno, a emoção de ver um rabo de saia e encontrar de plano a felicidade, como disse certa vez o já octogenário Henry Miller, autor da trilogia Sexus, Plexus e Nexus.
Nas viagens pelo mundo afora, Demétrio andou fazendo estrepolias, como a aventura de entrar numa casamata em plena selva vietnamita e quase ficar entalado. Por dois dias e duas noites permaneceu “preso” num hotel na Guatemala, porque “los Zetas están em toda parte”, advertiu-lhe o recepcionista. Adrenalina pura driblar os agentes do ditador sírio Bashar al-Assad que o seguiram pelas ruas de Aleppo, achando que o potiguar fosse um espião. Fantasia ou não do escritor, sabe-se que certa feita dormiu em São Petersburgo para conhecer o museu Hermitage, mas acordou de touca, em Moscou, num vagão de trem. No Nepal, Demétrio viu o rei e beijou mão de sua majestade. De passagem por Bangkok, caiu nas mãos das massagistas tailandesas e perdeu alguns quilos, chegou irreconhecível no aeroporto de Natal. Melhor assim do que ter caído nas garras dos tiras do ditador.
Natal sempre esteve em sua lavoura literária, mas nunca esqueceu Alexandria, onde nasceu, terra que deu berço e pia a outro poeta e prosador, Napoleão Veras, médico intelectual de prosa enxuta e elaborada, de quem Demétrio e Tácito Costa já me falavam desde o período jurássico, quando aqui cheguei. Recife também é um grafite retrô no muro da memória de Demétrio. Ali ele estudou, formou-se em Direito e morou por um longo período de sua vida. Descreve a cidade antiga — a recifernália e sua fauna notívaga, seus cinemas e lupanares — no conto “O Irmão Dió”, do livro “Nuno Labaredas e sua paixão por Baba Yaga”. Nessas leituras, ele nos chama para o zoom de sua câmera, traz do cacimbão do tempo a vida em preto e branco e ainda sai andando a pé madrugada adentro pela avenida, onde “o vento é fresco e melhor ainda é a anestesia da juventude”. Nostálgico, parece que ele está a todo tempo querendo dizer: “Como é perversa a juventude do meu coração que só entende o que é cruel e o que é paixão”, da canção de Belchior. Foi assim a vida toda, um homem sobressaltado pelas paixões e acima de tudo um sábio.