Casamento equivocado é o que não falta no mundo. Ampliando o arco, podemos afirmar que equívoco é o que não falta no mundo. Não só nos casamentos, mas em tudo, tudo mesmo. O homem é um ser que se equivoca ou um ser-para-o-equívoco, poderia escrever um filósofo alemão. Equivocamo-nos desde que acordamos, ao escolher a roupa que vestiremos, por exemplo, até quando nos recolhemos para dormir. É um fato.
Voltando ao casamento, sabemos que é mais comum os jovens se equivocarem nesse terreno. A falta de maturidade e de experiência, o natural e precipitado entusiasmo juvenil e a própria irresponsabilidade pura e simples explicam o fracasso de tantas uniões conjugais na juventude. É a paixão transitória (e cega) dominando as decisões e não a sensatez dos sentimentos amadurecidos. Compreende-se.
Mas e os matrimônios adultos? E, mais ainda, os celebrados no entardecer da vida? Supõe-se, com razão, que sejam uniões melhor refletidas, pois os cônjuges, além de vividos, não dispõem mais de tempo para consertar eventuais erros nem poderão gozar das desculpas usuais dos jovens. Entretanto, até aí o equívoco faz morada, provando que a idade nem sempre conduz à sabedoria. O casamento tardio dos poetas João Cabral de Melo Neto e Marly de Oliveira é um exemplo. Vejamo-lo em rápidos traços, com a consciência de que, se não constitui a regra, longe está de ser rara exceção.
Iniciemos com o temperamento de João Cabral. Por tudo que já se escreveu sobre o poeta pernambucano, sabemos que ele sempre esteve mais para o recolhimento que para a extroversão. Neste aspecto, era parecido com Drummond. Com o agravante de que sofreu a vida toda, até quase o fim, de uma persistente dor de cabeça, suficiente para estragar o seu humor. Era um notório ensimesmado, do ponto de vista da mundanidade, sem prejuízo, claro, da boa e gentil convivência com aqueles e aquelas que conseguiam adentrar sua resguardada privacidade. Como diriam os críticos, era mais homem do menos que do mais. O inverso de Vinícius (de Moraes), poder-se-ia afirmar. Sua poesia mostra isso – e sua vida também. Sempre a medida certa, o comedimento, a aversão aos excessos de quaisquer tipos. Já Marly de Oliveira, pode-se dizer, era o oposto, em termos de índole. Era expansiva e cultivava com indisfarçável gosto a chamada vida social e literária. Não era do recolhimento, da casa, era da expansão – e da rua.
O poeta foi casado com Stella em primeiras núpcias. Casamento de décadas e de muito entendimento e afeto mútuos. Infelizmente, ela adoeceu gravemente e faleceu em 1986, no apartamento do casal no bairro do Flamengo, no Rio, apesar de todo o tratamento que lhe foi dispensado. Cabral fica sozinho. Os filhos, já crescidos e com vida independente, sugerem sua volta ao Recife. Ele argumenta que não faz sentido, pois os seus contemporâneos estão quase todos mortos: “O que eu vou fazer lá?” Logo depois, imprudentemente, ele se casa com Marly, aos sessenta e seis anos, já baqueado; ela tem vinte anos a menos, ou seja, na flor da idade, como se diz, e está com a corda toda. Dará certo?
O tempo irá mostrar que não. Assim como o Recife, o Rio de Janeiro que recebe João Cabral após sua aposentadoria como embaixador de carreira lhe é praticamente estranho. É então uma cidade dominada pela violência urbana, sem nada da doçura dos primeiros anos do poeta na “cidade maravilhosa”. Por outro lado, a frequentação da Academia não o anima, sem falar nos problemas de visão que começam a afetá-lo, ao ponto de impedir a leitura e os jogos de futebol pela televisão, atividades que o distraiam no cotidiano. Como se vê, abre-se um ambiente propicio ao isolamento e à depressão, ambiente ao qual Marly, jovem e sociável, não quer se sacrificar. Eis o problema.
Evidente que, dentro do possível, Marly de Oliveira fez companhia ao marido cada vez mais enclausurado e melancólico, mas tinha a sua vida profissional e pessoal para levar e isso exigia que se ausentasse constantemente do penumbroso apartamento do Flamengo, deixando o poeta sozinho com seus fantasmas. Naturalmente, ficou difícil a convivência dos cônjuges – e assim vai ser até a morte de João Cabral, em 1999, aos 79 anos. Foram treze anos de casamento com Marly, aproximadamente.
Ter-se-ão arrependido os dois poetas da decisão de casar? Aqui só podemos especular, é claro, mas há elementos para a especulação. Vejamos. Quanto a ela, talvez não tenha se arrependido de todo, uma vez que ser casada com João Cabral de Melo Neto adicionou-lhe um prestígio literário e social considerável e ao qual, parece, ela era bastante sensível. Mas o fato de não poder exibir tanto o marido glorioso, como gostaria, e o fardo de ter que cuidar dele na velhice sorumbática devem ter pesado negativamente em sua avaliação matrimonial. Quanto a ele, imagino que, passado o entusiasmo inicial, a avaliação tenha sido plenamente negativa, mormente a partir de quando se viu vítima da solidão e da melancolia, sem ter com quem dividir suas agruras. Fosse a companheira menos moça e ativa, e mais presente ao lar, talvez tivesse sido diferente.
Um casamento equivocado? Diria que sim. Completamente. Ele buscou precipitadamente preencher a solidão conjugal pós-viuvez; ela buscou a glória literária do parceiro, sem atentar para seu temperamento recluso e para a expressiva diferença de idade que os separava quando do casório. Tinha, portanto, tudo para dar errado – e deu. Poderia ter dado certo? Claro. Mas aí seria “a vitória da esperança sobre a experiência”, hipótese sempre mais difícil de acontecer.
Como bem sabe o leitor, há nesta história toda, misturadas, realidades e suposições. Afinal, quem pode falar com propriedade sobre um casamento, qualquer casamento, além dos próprios cônjuges? O problema é que estes, quando falam, em regra são parciais, só contam as coisas pela metade, a sua metade, o seu ponto de vista. Sendo assim, é preciso um terceiro que procure vê-las integralmente, na medida do possível e se é que é possível. É o que, com a ajuda indispensável de outros terceiros que me antecederam, estou tentando fazer aqui nestas breves linhas.