Sou do tempo em que, no Colégio Marista (1968-1973), levantávamos quando professores, diretores, autoridades entravam na sala de aula....

Três imagens dos professores no Cinema

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Sou do tempo em que, no Colégio Marista (1968-1973), levantávamos quando professores, diretores, autoridades entravam na sala de aula. Havia respeito e admiração pelos mestres, como se fossem uma extensão de nossos pais. Relembro meus tipos inesquecíveis (ou meus “malvados favoritos”) no velho Pio X: cada um deles nos deixou um legado precioso: o Professor Cleodon (matemática, ordem, concentração), Professora Gisela (português, correção na postura e na linguagem) e Professora Josefina (ético, formação do caráter, espontaneidade diante das questões corporais)(1).


Hoje os antigos mestres parecem personagens de cinema, como no filme “Amarcord” (Fellini). Na Itália fascista, os pedagogos tinham uma aura de superioridade moral. Isto pode ser mero reflexo dos afetos juvenis. Mas me interessa resgatar as imagens dos professores no cinema, em que parecem extraordinários, como de seres mitológicos, “novos olimpianos”, como diz Morin para designar os astros e estrelas da sétima arte.

Animado para decifrar as tramas dos jornalistas no cinema, garimpei mundos e fundos sobre o tema, e fiz o texto “Os jornalistas, os jornais e outras mídias no cinema Um estudo sobre ética e representação na arte cinematográfica” (2005)2. Ali se tratava num tipo de “aposta” (Pascal), intuição ou crença em que o cinema pensa e leva a pensar.

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Hoje, me atrai outro modo de orientação. Me parece quase obrigatório explorar a representação dos “Professores no Cinema”. E aí, pensando nos professores do filme Amarcord (Fellini), é preciso distinguir a noção de “autoridade”, que sinaliza caminhos, orienta escolhas e decisões no âmbito das ideias, discursos e ações, levando ao aprendizado, e a noção tóxica de “autoritarismo”, ligada à violência do controle, repressão e colonização dos espíritos. Convém resgatar a influência fundamental do professor na formação ético-cognitiva do aprendiz, como escreve Muniz Sodré em “Reinventando a Educação” (2012). Reconhecer a importância dos mestres concorre para estimular a passagem do preconceito ao conceito, substituir os afetos tristes pelos afetos nobres. Mirar os filmes com o tema da pedagogia é remontar a fé no professor,
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Amarcord (1973)
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Imdb
respeitar a substância de sua sabedoria, reconhecer sua responsabilidade na formação do caráter.

Explorar as representações dos professores no cinema implica em enfrentar a barbárie (quando alunos desrespeitam e agridem professores); significa reacender as luzes da razão sensível para ingressar no processo civilizatório.

Há uma lista infindável de filmes com professores protagonistas, e aqui a escolha de três filmes é orientada por critérios afetivo-memoriais, mas que podem servir como estímulos de fruição e à reflexão. Cumpre enfrentar o tema complexo da educação, escola, professores e alunos que tem sido maculado por ocorrências violentas, crimes “inexplicáveis”, que geram medo, apreensão e instabilidade emocional. Todavia, refirmamos que o cinema pensa e leva a pensar na experiência humana engajada no conhecimento, nas artes, imaginação criadora, ética, consciência, instâncias de felicidade.


Ao Mestre com Carinho (1967) é um filme dirigido por James Clavell e estrelado por Sidney Poitier, pioneiro na representação de um professor negro, lecionando numa escola de subúrbio pobre de Londres, para estudantes em maioria brancos.

Afetados pelo racismo, intolerância, conflitos familiares, traumas pessoais e ressentimentos, os alunos apresentam hostilidade, afetos agressivos e atitudes violentas para com o professor. A inteligência sensível do filme consiste no enfoque do encontros-confrontos
entre o mestre e os alunos, e sua virtude reside na arte da conquista da confiança e empatia, no desmanche da “cultura do ódio”.

Olhares, gestos, atitudes, palavras geradoras de afetos, desarmam os espíritos hostis, trazendo à tona a parte de empatia, carinho, amor, generosidade e solidariedade de cada um dos estudantes. Há, é claro, uma dose de romantismo na encenação da amizade e aproximação dos contrários, numa sociedade com matizes racistas, como a europeia.

Entretanto as imagens de Ao Mestre com Carinho conformam uma significação nobre, no que respeita ao êxito do professor em conseguir elevar à autoestima dos alunos, contribuir no amadurecimento dos adolescentes, induzir à coragem para enfrentar a vida e assegurar o seu lugar na sociedade competitiva, enquanto cidadãos civilizados. O filme ficou na memória dos cinéfilos, pelo brilho e emoção da canção “To Sir with Love” (“Ao Mestre com Carinho”), traduzida em Portugal como “O ódio que gerou o Amor”.



Sociedade dos poetas mortos (1989) é um filme norte-americano dirigido por Peter Weil, escrito por Tom Shulman e estrelado por Robin Williams.

Em 1959, em uma escola conservadora e norteada por valores da “tradição, honra, disciplina e excelência”, o novo professor (John Keating / Robin Williams) instiga os estudantes a enfrentarem os códigos do ensino tradicional. E provocantemente leva os alunos a buscarem novos caminhos, outras leituras e relações, (des)encaminhando-os da pedagogia voltada para uma vida
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“normatizada”, nos parâmetros do status quo puritanista estadunidense. Keating propõe uma aprendizagem (de si e do mundo), em que os valores estéticos, artísticos, poético-literários refinariam a percepção, encorajando-os a vivenciarem um “estilo de existência” distinto da geração conformista que os precedeu.

Keating apresenta aos alunos uma “Sociedade dos Poetas Mortos”, fundada por ele quando estudante na mesma escola. “Carpem Diem” é seu mantra (emprestado do poeta romano Horácio), que significa “aproveite o dia, o momento”. Esta é sua orientação no pensamento, linguagem e atitude na vida, e ele o transmite aos jovens aprendizes conforme denota a frase: “Façam suas vidas extraordinárias”. Pensar e agir com a cabeça e o corpo, ocupar novos espaços, olhar para o mundo numa outra perspectiva. E assim, fica de pé sobre o birô, mirando do alto, instigando os alunos a fazerem o mesmo.

Suas frases são lapidares: “A maioria dos homens leva a vida num tranquilo desespero. Não se deixam levar por isso. Reajam!” Logo, os pupilos despertam altas horas da noite, fogem dos dormitórios e se embrenham em grutas na floresta empenhados em recitar poesia. Realizam assim pequenos atos de rebeldia como via de acesso à vida plena, ao esplendor do conhecimento, ao prazer dos sentidos e ao vigoroso exercício da liberdade.


Um dos alunos mais sensível e atrevido (Neil Perry / Robert Sean Leonard) se interessa em participar da peça de teatro escolar “Sonho de uma noite de verão” (Shakespeare). Seu pai é contra, ele se rebela, foge e vai ao placo, sofre represálias, não suporta e se mata. Os rituais da “Sociedade dos Poetas Mortos” são descobertos pelos insensíveis gestores da escola e o professor é demitido. Mas antes de partir faz uma última entrada na sala de aula (durante a sessão do professor substituto). Os alunos estão arrasados com a saída do mestre. E após olhares, hesitações, cumplicidades, alguns dos estudantes optaram por tornar suas vidas extraordinárias, desobedecem às regras, sobem nas carteiras e de pé recitam a frase poética de Walt Whitman ensinadas por Keating: “Oh Capitão, meu capitão!”(3) Trata-se aqui de uma deferência ao mestre, permanência dos ensinamentos na memória dos iniciados, sinal de gratidão pela dádiva, pelos hábitos de leitura, amizade, senso crítico, autoconhecimento e breves instantes de felicidade.


O Anjo Azul (1930) é um antigo filme expressionista alemão em preto e branco, de Josef von Sternberg, baseado no livro de Heinrich Mann, protagonizado pelo célebre ator Emil Jannings e que lançou a atriz Marlene Dietrich ao estrelato.

Immanuel Rath (Emil Jannings) é um triste e conservador professor de inglês e literatura, na Alemanha de Weimar (1925), portanto antes da experiência nazista. Um dia descobre seus alunos com a fotografia de Lola (Dietrich), atriz do cabaré Anjo Azul e se empenha em livrar os pupilos do “desencaminhamento moral”, mas ao conhecê-la se apaixona perdidamente, perde o autocontrole, torna-se objeto de zombaria dos alunos, é demitido da escola e se casa com ela. Quatro anos depois, em 1929 (próximo da ascensão de Hitler), sendo sustentado pela artista, é traído, se deprime, se alcooliza, torna-se um “outsider”, é usado publicamente como palhaço, o que o leva a um surto psicológico.
Ao final, na tela se projeta o retrato da decadência: o professor Rath revisita sua antiga sala de aula, mas é rejeitado e humilhado.

Essa é uma das imagens mais forte do professor no cinema. O papel do professor é bastante ambíguo, e a narrativa tem sido, por um lado, considerada conservadora pela punição de um moralista que entra em decadência ao submergir desencaminhado pelo destempero, tentação da carne e desejo de liberdade. Por outro lado, há interpretações dessa representação como libertária e anticonservadora, pois o mestre corajosamente abre mão de uma existência afetivamente vazia, larga a esposa, e opta em seguir seu desejo. E embora tenha que enfrentar o julgamento moral e o desprezo social, experimenta pela primeira vez o seu café mais doce e a escuta do canto feliz dos pássaros.

Trata-se de uma obra memorável em que se mostra o professor em sua condição de ser “humano demasiadamente humano” (Nietzsche). Como a grande arte, o filme ultrapassa o simples melodrama e focaliza a tragédia da existência, em que o indivíduo atua à beira do abismo, numa experiência radical entre a realização do desejo e a sua impossibilidade, numa sociedade regida por valores incivilizados, às vésperas da ascensão nazista.


Entretanto, caberia se destacar a beleza da fotografia expressionista e captura das imagens em movimento, em preto e branco. Aqui as falas não são o discurso dominante, pois os gestos, olhares, posturas e movimentos dos atores, capturados pela retina fotográfica, liberam o contágio de outra significação. Há uma rivalidade explícita entre o amor do professor pelo ofício da pedagogia (engessada) e a sua paixão amorosa desastrada (mas libertária), algo visível apenas na revelação sensível da câmera fotográfica. Enfim, eis uma decupagem das imagens sedutoras que fazem do espectador um cúmplice na experiência “marginal”, uma ode à doce subversão do amor (ainda que) maldito, deleite pagão, gozo estético face à encenação do cinema de transgressão.


Para concluir:

Os três filmes indicados sob distintos registros estéticos, políticos, ideológicos, servem-nos de pretexto para nos manifestarmos acerca das questões delicadas referentes à educação e ao cotidiano na vida escolar, envolvendo alunos, professores e toda comunidade de profissionais ligados ao processo educacional.

Como no filme Ao Mestre com Carinho apostamos na possibilidade de reverter a barbárie e construir as bases para a evolução da educação em bases emancipatórias. De modo similar, o filme Sociedade dos Poetas Mortos nos alerta para a transformação da vida impressa a dólar em uma “estilística da existência” norteada por nossas “verdades” mais profundas, o direito ao sonho e a busca da realização dos desejos norteada pela ética e responsabilidade, sem jamais se desvirtuar dos projetos pessoais viáveis de felicidade.

E, o filme Anjo Azul, talvez o mais complexo dos três, pode ser visto como extemporâneo: se passa na Alemanha pre-nazista, onde os códigos de conduta são rígidos, onde o dever, o querer e o fazer parecem desencontrados. Mas poderia muito bem se passar no Brasil do século XXI, saindo de um regime político de exceção (e de uma pandemia), em que os setores básicos da vida civil se mostram destroçados.

Esse “cult movie”, sobretudo, revela uma modalidade de controle dos corpos por parte de um “biopoder” (Foucault) que tende a atravessar todas as instâncias da experiência existencial. E ao mesmo tempo expressa um tipo de manifestação “biopolítica” do próprio indivíduo, que ousa exercer sua liberdade e subjetividade, com autonomia do pensamento, linguagem e atitude. O Anjo Azul explicita “o cuidado de si” (ou sua falta) e a elaboração de um modo de existência que parte da força de vontade e autodeterminação. Talvez seja essa a imagem que se deva guardar do bom professor.
NOTAS (1) Não tive a sorte de ser aluno de Aléssio Toni, que lecionou no Pio X, mas sei da sua competência, fez a orelha do meu primeiro livro, Reflexos do Espelho (coautoria com Juca Pontes), espécie de diário (com pretensões poéticas) de adolescentes.

(2) Publiquei o texto na BOCC, incrível biblioteca portuguesa que pode ser visitada neste link. E virou também capítulo do meu livro Epifanias da Imagem (2017), que pode ser igualmente acessado pelos leitores pacientes, no engraçadinho site Calameo.

(3) Poema metafórico escrito em 1865 por Walt Whitman, fazendo referência à morte do Presidente dos EUA, Abraham Lincoln. O “capitão” seria o próprio Lincoln. Uma saudação poética, homenagem respeitosa a lenhador, homem simples, que se tornou Presidente.

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