Capiberibe - Capibaribe Lá longe o sertãozinho de Caxangá Banheiros de palha Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o...

Sem nenhum alumbramento

nudez feminina costume moral
Capiberibe - Capibaribe Lá longe o sertãozinho de Caxangá Banheiros de palha Um dia eu vi uma moça nuinha no banho Fiquei parado o coração batendo Ela se riu Foi o meu primeiro alumbramento

Estes versos, como se sabe, são de Manuel Bandeira, no famoso poema “Evocação do Recife”, constante de seu livro Libertinagem, de 1930. O poema foi escrito a pedido de Gilberto Freyre, para as comemorações do centenário do jornal Diário de Pernambuco, se não me engano, e nele Bandeira rememora e ressuscita o Recife de sua infância, um Recife que, infelizmente, já àquela época achava-se em franco processo de desfiguração urbana. Ó Brasil!

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Henri Matisse
Mas o que me importa nestes versos memorialísticos, aqui e agora, não é o Capibaribe nem o Recife bandeiriano, mas a moça nua no banho e o alumbramento inicial que provocou no menino. Que momento deve ter sido esse, imagino, para o futuro poeta. Descobrindo a cidade, o mundo, a vida e a si mesmo, enquanto individualidade, eis que se depara de repente, sem esperar, sem qualquer preparação, com a visão sonhada por todo menino/adolescente: uma mulher nua, nuinha, corpo inteiro ao dispor dos olhos inocentes do infante atônito, paralisado, coração acelerado, quem sabe um ensaio de ereção incipiente, a súbita transição da criança ao futuro homem, através do erotismo intrínseco àquele deslumbramento inaugural. Realmente, um instante para não esquecer.

Lembro-me bem. A minha geração (1955) provavelmente foi a última que antecedeu a liberdade sexual trazida pelos movimentos pós-1968 e pós-pílula anticoncepcional. Salvo para alguns e apenas em alguns lugares do Brasil, definitivamente, o sexo não foi livre nem fácil para adolescentes e rapazes, ainda submissos aos valores moralmente conservadores de então. Fora do casamento, a única possibilidade tolerada para as iniciações e as boemias era praticamente o lupanar, lugar de adultos, onde o comércio carnal fazia-se sem o véu dos romantismos, mesmo nas casas de melhor nível, nas quais a condição sócio-econômica mais favorecida dos frequentadores terminava por elevar a atmosfera crua dos locais.

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Henri Matisse
Natural, portanto, que o maior mito a povoar os sonhos dos meninos/adolescentes fosse a nudez feminina, o idealizado corpo de mulher em sua plenitude erótica, a mulher nuinha, sem artifícios, graciosamente entregue ao olhar e ao toque daqueles marinheiros de primeira viagem, marujos ainda em terra firme, fantasiando, à expressão máxima, mares – e oceanos – nunca dantes navegados. E como sonhávamos! Claro. Pois ninguém esperava ter a sorte do menino Bandeira e deparar-se com um alumbramento igual ao seu. Até porque não havia, naquela fase, quem conhecesse essa palavra estranha nem os versos do poeta.

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Henri Matisse
O escritor Luís Martins, em seu livro de memórias Noturno da Lapa, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1964, escrevendo sobre o despertar em sua meninice, também traz a lume essa mitologia masculina: “Amanhece nos ladrilhos da varanda, há pouco lavada, e um coleirinho do brejo inicia o cântico do novo dia. O espelho do lavatório revela-me um rosto ansioso, ainda manchado de fermentos noturnos, olhos arregalados e surpresos, a boca juvenil entreaberta e sôfrega, impaciente de sorver de uma só vez todos os enigmas da vida. A nitidez do dia desmancha aos poucos a névoa dos sonhos, por onde perpassava, em triunfo, o inatingível mito da mulher nua”.

Henri Matisse
A nudez feminina, seu mito, seu sonho, sua inatingibilidade, tudo isso fazia parte da realidade infanto-juvenil de então. A ansiosa, quase desesperada espera pela primeira experiência viril, as fantasias, as conversas mais ou menos mentirosas dos colegas do colégio e da rua, todos aparentemente mais adiantados naquela corrida sem fim em direção a um corpo de mulher, qualquer mulher, pois quando é grande a necessidade a exigência se encolhe, a vida ensina isso desde cedo.

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Henri Matisse
E então, mais cedo ou mais tarde, de uma forma ou de outra, chegava o dia (ou a noite) tão esperado. De forma planejada ou espontânea, acontecia, finalmente. O mito, se não desvendado e compreendido, era pelo menos visto a olho nu, talvez tocado desajeitadamente, como o são as coisas recém-descobertas. E na maioria dos casos, decepção, uma infinita distância entre o sonho e o real, malogro que a vida a ser vivida dali para a frente haveria (ou não) de resolver. O menino/adolescente voltava homem para casa. Sim, mas sem nenhum alumbramento.

Hoje a nudez feminina está à disposição dos meninos em todos os lugares: nas praias, nas piscinas, nos celulares, nos computadores. E até nos colégios ou nas áreas de lazer dos edifícios. Logo cedo, a mulher nua não tem para eles nenhum segredo. Banalizou-se. Despiu-se de todos os mistérios e, em consequência, da maravilhosa capacidade de alumbrar. E o pior de tudo é que os meninos/adolescentes, de tão enfastiados, não estão nem aí. Nem para a nudez nem para o alumbramento. As meninas/mulheres reclamam dessa indiferença. Mas não param um segundo para refletir que são elas as culpadas. Ó tempos!

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