Um desses passeios costumeiros pelas trilhas infindas da Internet leva-me ao regate de conversa com a professora Adylla Rabello para A CARTA, o semanário do editor Josélio Gondim. Transcorria julho de 1990 e ela me falava da elaboração do “Dicionário Paraibano de Literatura”, trabalho a cargo de uma equipe de professores da UFPB que integrava na ocasião.
Mais do que isso, Adylla torcia pelo auxílio do Programa Biblioteca da Paraíba a fim de publicar sua tese de Mestrado, um exercício de crítica genética relacionada ao protocolo de crônicas “Sem me rir, sem chorar” – José Américo de Almeida nos bastidores”. Tivera acesso aos manuscritos do político e romancista paraibano, o que lhe possibilitaria o êxito da tarefa.
Esse gênero de crítica literária ainda era algo um tanto novo. Acabo de ler que o termo “crítica genética” apareceu, pela primeira vez, em 1979, no título de uma coletânea publicada por Louis Hay, embora a metodologia houvesse nascido em 1966, ano em que a Biblioteca Nacional da França adquiria manuscritos do poeta alemão Heinrich Heine. Pesquisador a serviço do parisiense Centro Nacional de Pesquisa Científica, o mesmo Hay criava, em 1968, um grupo de germanistas para organizar esses textos.
É isso o que agora me desperta a lembrança da entrevista a que dei o título “Mergulhos na alma”. E o subtítulo: “Exemplo de tenacidade, ela, já avó, se desfaz da figura de dona de casa em favor da pesquisa e da literatura”. Adylla deixou esse mundão de Deus em 20 de julho de 2015, lá se vão quase oito anos. Como o tempo corre...
Nossa entrevista teve esta introdução:
U
ma rasura aqui, um acréscimo acolá, uma troca de palavras... Pronto, o autor tem sua alma aberta à ação de um gênero um tanto novo de crítica literária. A análise de seus manuscritos permite a descoberta de mentiras, ou a desmistificação do “eureka”, aquele instante mágico de inspiração atribuído a uma infinidade de obras primas universais, sobretudo no campo da poética.Foi examinando o espólio de Paul Valéry que a crítica genética comprovou que o poema “Été” não foi feito numa noite de tempestade, como durante muito tempo se supunha. A profusão de manuscritos encontrados depois da morte do poeta revelou que a construção do poema deu-se em vários dias.
Em João Pessoa, a crítica genética tem seu nome ligado à figura de uma avó, por mais surpreendente que possa ser a jovialidade de Adylla Rocha Rabello. Casada, em 1954, com o comerciante Humberto Rabello, ela foi mãe antes de completar a maioridade. Era uma época em que as moças casavam cedo e liam os romances água-com-açúcar de M. Dely recomendados pelas freiras francesas do Colégio das Neves.
E as prendas domésticas sufocaram por muito tempo a veia literária e o amor da professora Adylla pelo ensino e a pesquisa. Por exemplo, ela somente fez o Vestibular de Letras da UFPB em fins de 1979, depois de cinco filhos e da primeira das sete netas e netos, a menina Domenica, hoje com nove anos.
A década de 1980, porém, testemunharia os frutos do denodo e perseverança que a tornariam professora com especialização em Francês e Literatura Brasileira, pesquisadora de renome, diretora de museu e, posteriormente, do Departamento de Promoções Culturais da Fundação Casa de José Américo de Almeida.
Foi, justamente, o acesso aos manuscritos de José Américo o que lhe permitiu elaborar a tese de mestrado: O protocolo das crônicas “Sem me rir, sem chorar” – José Américo de Almeida nos bastidores. (...) Autora, ainda, de obras como “Parece-me comigo – uma aventura carnavalesca de José Américo de Almeida”, “Catálogo da Exposição do Centenário de José Américo” e “A Bagaceira, 60 anos de um romance”, Adylla Rabello não para. Já, agora, ela começa a pesquisar em Abelardo Jurema, ex-ministro da Justiça de João Goulart, o homem, o político, o escritor e o jornalista.
▪ Devo isso aos desígnios divinos. Se eu tivesse começado tudo o que faço hoje muito cedo, provavelmente, já estaria aposentada. Acontece que eu continuo gostando de trabalhar, estudo bastante, pesquiso, busco o aprimoramento e isso ajuda à minha cabeça. Talvez eu tenha, aí, a resposta para quem me acha muito jovem para os cinco filhos e os sete netos que tenho. É como se houvesse o perfil da estudante mascarando a realidade ⏤ comentou ela, no início da semana, durante essa entrevista a A CARTA.
Seguiu-se o pingue-pongue:
⏤ O que vai ser o Dicionário Literário da Paraíba?
▪ O título ainda não é definitivo, mas esse é um projeto muito interessante. A ideia nasceu de uma conversa um tanto antiga entre José Joffily e a professora Idellete Muzart Fonseca dos Santos, uma francesa com dez anos de João Pessoa e marido brasileiro. Joffily lembrava que a Paraíba é pródiga em escritores, poetas e cronistas, gênero em que eu me especializei para preparar a minha tese sobre as crônicas de José Américo, precisamente, as da coleção “Sem me rir, sem chorar”, que ele publicou na Revista O CRUZEIRO, de 1957. Fui enquadrada no projeto do Dicionário como pesquisadora, em virtude da minha formação e da vivência na Fundação Casa de José Américo. Já Idellete nutria paixão pela literatura paraibana quando ainda morava na França. Ela é da região de Aix-en-Provence, nos limites com a cidade espanhola de Santiago de Compostela, onde começa o famoso caminho de São Tiago, local de romaria. Pois bem, essa região é um grande centro de literatura oral, a exemplo do que ocorre com o Nordeste brasileiro. E, ainda lá, Idellete conheceu a obra de Ariano Suassuna. Ela sabia português e chegou a ensinar francês em Portugal. Fez da literatura oral o corpo de sua tese de doutorado na Sorbonne e, já no Brasil, elaborou o roteiro para se ler “A Pedra do Reino”, de Ariano, que não fez um livro fácil e de quem se tornou amigo.
⏤ Que miolo terá o Dicionário?
⏤ Quando tudo ficará pronto?
▪ Os originais deverão ser entregues este ano, quando começa outro projeto denominado Biblioteca da Paraíba. É um projeto muito do Ministério da Educação, Secretaria Nacional da Cultura e do governador Tarcísio Burity. Envolve uma lista vasta de obras esgotadas para reedição, e uma prioritária, que será a edição do Dicionário. Eu aproveito a oportunidade para lembrar a referência que o governador costuma fazer a José Américo e para sugerir a publicação, também, da minha tese de mestrado. Trata-se de um texto inédito, aprovado com distinção e algo pioneiro no Brasil. Minha pesquisa é de crítica genética, uma coisa muito nova no mundo. São pouquíssimos os trabalhos na linha da crítica genética.
⏤ Quais as diferenças básicas entre a crítica genética e a convencionalmente feita a partir de bibliografias?
▪ Enquanto a edição crítica de uma obra se prende aos textos publicados e até reelaborados, sanando-se todos os problemas de erros e distrações gráficas, a crítica genética vai mais além. Não se preocupa com revisões gráficas pois a preocupação maior diz respeito aos manuscritos. Como crítico genético você, portanto, vê o nascer do texto, daí o nome gênese. Você analisa as rasuras, borrões, acréscimos, retiradas, traços fortes na forma da Cruz de São Tomé anulando trechos e páginas. Então, você chega a penetrar no laboratório poético do autor. É como se você estivesse assistindo à produção daquele texto. Você consegue dimensionar êxtases e presenciar o momento em que as musas inspiradoras baixam e o autor se vê compelido a produzir. E a crítica genética consegue provar que nem sempre o texto é fruto imediato da inspiração.
▪ A rasura é a própria enunciação. É aquele momento da construção mental e da passagem do texto para o papel. É quando aparece o “escriptor”, figura que os teóricos dessa linha de pesquisa definem como o “eu vigilante” do autor, a entidade que o obriga a refazer o que fora escrito. A crítica genética, portanto, revela o emocional, o psicológico. Depois que eu passei a estudar isso, comecei a aconselhar os escritores que eu conheço a não rasgar nada. Até o papelzinho anexado a grampo faz parte do grande texto. A crítica genética é isso.
⏤ Mas a coisa serve para quem não escreve à mão, ou para quem dita texto?
▪ Manuscrito, na nossa área de interpretação, não é somente aquilo que sai das mãos. Você deve entender manuscrito, no campo da produção literária, como tudo aquilo que ainda não foi impresso. O ministro José Américo, por exemplo, não escrevia à máquina e escrevia pouco à mão devido a uma deficiência visual muito forte. Já com idade mais avançada sua letra era entendida apenas por Lourdinha (a secretária particular). Ele dizia que desde menino se aproximava tanto do papel que, às vezes, manchava o nariz de tinta. Seus textos, portanto, eram ditados. Há uma rasura muito interessante de José Américo. Ele trocou a palavra “bairros” por “morros”, descrevendo o carnaval carioca dos anos de 1930. Ou seja, mandou que a datilógrafa batesse aqueles xizinhos sobre “bairros” e escrevesse “morros”. Ora, isso prova que foi uma rasura feita na hora da construção do discurso, sem retirar o papel da máquina. Caso contrário, teria feito isso a tinta. O momento da rasura, repito, é importante para a crítica genética. A partir dela nós podemos marcar os tempos da construção. No caso de José Américo, eu aprendi tanto a conhecer o autor que identificava, inclusive, os traços a tinta. Quando eram mais fortes, eu sabia que foram feitos por dona Alice (mulher do escritor).
▪ O título ainda não é definitivo, mas esse é um projeto muito interessante. A ideia nasceu de uma conversa um tanto antiga entre José Joffily e a professora Idellete Muzart Fonseca dos Santos, uma francesa com dez anos de João Pessoa e marido brasileiro. Joffily lembrava que a Paraíba é pródiga em escritores, poetas e cronistas, gênero em que eu me especializei para preparar a minha tese sobre as crônicas de José Américo, precisamente, as da coleção “Sem me rir, sem chorar”, que ele publicou na Revista O CRUZEIRO, de 1957. Fui enquadrada no projeto do Dicionário como pesquisadora, em virtude da minha formação e da vivência na Fundação Casa de José Américo. Já Idellete nutria paixão pela literatura paraibana quando ainda morava na França. Ela é da região de Aix-en-Provence, nos limites com a cidade espanhola de Santiago de Compostela, onde começa o famoso caminho de São Tiago, local de romaria. Pois bem, essa região é um grande centro de literatura oral, a exemplo do que ocorre com o Nordeste brasileiro. E, ainda lá, Idellete conheceu a obra de Ariano Suassuna. Ela sabia português e chegou a ensinar francês em Portugal. Fez da literatura oral o corpo de sua tese de doutorado na Sorbonne e, já no Brasil, elaborou o roteiro para se ler “A Pedra do Reino”, de Ariano, que não fez um livro fácil e de quem se tornou amigo.
⏤ Que miolo terá o Dicionário?
A rasura é a própria enunciação. É aquele momento da construção mental e da passagem do texto para o papel. É quando aparece o “escriptor”, figura que os teóricos dessa linha de pesquisa definem como o “eu vigilante” do autor, a entidade que o obriga a refazer o que fora escrito.▪ Vai de A a Z, como qualquer outro. Conterá verbetes com nomes de autores, datas, local de nascimento e de morte, quando for o caso, relação de livros publicados por cada um deles e análise de natureza crítica dessas obras. No capítulo das crônicas, que é o que me cabe, haverá um verbetão, um bolsão de cronistas a serem relacionados, mesmo quando eu não conseguir – no caso dos mais antigos – a localização de seus livros. A pesquisa é muito árdua, no caso dos escritores do Século 19. E as dificuldades começam pela inexistência de obras com folhas de rosto que contenham referências completas do autor. Quando essas pesquisas começaram havia muita gente envolvida no projeto, inclusive, estudantes da UFPB, já que o Dicionário é fruto de convênio da Universidade com a Fundação. Com o passar do tempo, as pessoas foram se afastando, de modo que eu não sei dizer quantos somos hoje em dia, além de mim e de Idellete.
⏤ Quando tudo ficará pronto?
▪ Os originais deverão ser entregues este ano, quando começa outro projeto denominado Biblioteca da Paraíba. É um projeto muito do Ministério da Educação, Secretaria Nacional da Cultura e do governador Tarcísio Burity. Envolve uma lista vasta de obras esgotadas para reedição, e uma prioritária, que será a edição do Dicionário. Eu aproveito a oportunidade para lembrar a referência que o governador costuma fazer a José Américo e para sugerir a publicação, também, da minha tese de mestrado. Trata-se de um texto inédito, aprovado com distinção e algo pioneiro no Brasil. Minha pesquisa é de crítica genética, uma coisa muito nova no mundo. São pouquíssimos os trabalhos na linha da crítica genética.
⏤ Quais as diferenças básicas entre a crítica genética e a convencionalmente feita a partir de bibliografias?
▪ Enquanto a edição crítica de uma obra se prende aos textos publicados e até reelaborados, sanando-se todos os problemas de erros e distrações gráficas, a crítica genética vai mais além. Não se preocupa com revisões gráficas pois a preocupação maior diz respeito aos manuscritos. Como crítico genético você, portanto, vê o nascer do texto, daí o nome gênese. Você analisa as rasuras, borrões, acréscimos, retiradas, traços fortes na forma da Cruz de São Tomé anulando trechos e páginas. Então, você chega a penetrar no laboratório poético do autor. É como se você estivesse assistindo à produção daquele texto. Você consegue dimensionar êxtases e presenciar o momento em que as musas inspiradoras baixam e o autor se vê compelido a produzir. E a crítica genética consegue provar que nem sempre o texto é fruto imediato da inspiração.
Manuscritos originais dos escritores Eça de Queiroz e José Saramago
⏤ Qual o significado das rasuras nas análises do gênero?▪ A rasura é a própria enunciação. É aquele momento da construção mental e da passagem do texto para o papel. É quando aparece o “escriptor”, figura que os teóricos dessa linha de pesquisa definem como o “eu vigilante” do autor, a entidade que o obriga a refazer o que fora escrito. A crítica genética, portanto, revela o emocional, o psicológico. Depois que eu passei a estudar isso, comecei a aconselhar os escritores que eu conheço a não rasgar nada. Até o papelzinho anexado a grampo faz parte do grande texto. A crítica genética é isso.
⏤ Mas a coisa serve para quem não escreve à mão, ou para quem dita texto?
▪ Manuscrito, na nossa área de interpretação, não é somente aquilo que sai das mãos. Você deve entender manuscrito, no campo da produção literária, como tudo aquilo que ainda não foi impresso. O ministro José Américo, por exemplo, não escrevia à máquina e escrevia pouco à mão devido a uma deficiência visual muito forte. Já com idade mais avançada sua letra era entendida apenas por Lourdinha (a secretária particular). Ele dizia que desde menino se aproximava tanto do papel que, às vezes, manchava o nariz de tinta. Seus textos, portanto, eram ditados. Há uma rasura muito interessante de José Américo. Ele trocou a palavra “bairros” por “morros”, descrevendo o carnaval carioca dos anos de 1930. Ou seja, mandou que a datilógrafa batesse aqueles xizinhos sobre “bairros” e escrevesse “morros”. Ora, isso prova que foi uma rasura feita na hora da construção do discurso, sem retirar o papel da máquina. Caso contrário, teria feito isso a tinta. O momento da rasura, repito, é importante para a crítica genética. A partir dela nós podemos marcar os tempos da construção. No caso de José Américo, eu aprendi tanto a conhecer o autor que identificava, inclusive, os traços a tinta. Quando eram mais fortes, eu sabia que foram feitos por dona Alice (mulher do escritor).
Bate-me, de repente, uma saudade enorme de Adylla. É sentimento que se agudiza, acredito eu, em razão de perdas dolorosas, as de amigos que, de uma hora para outra, somem do nosso ciclo e das boas conversas. Não é Juca Pontes?