Bastou uma chuva fina, uns pingos breves, coisa apenas suficiente para umedecer a terra e agitar o cheiro que dela se ergue em tais ocasiões e, pronto, entrei em estado de graça.
Preciso dizer que o aroma de terra molhada faz isso comigo. Esteja onde estiver, eu logo me transporto para um mundo somente meu. Para um lugar sem tempo, compromissos nem problemas. Aí, tenho meus pais vivos, meus irmãos presentes, os velhos amigos de volta e, também assim, um ou outro amor perdido.
Acho que nasci com as narinas no coração. O que então me adorna a face – com o perdão do termo, pois o nariz não me parece um milagre estético – é mero apêndice, algo sem função a não ser a de me conceder tudo aquilo que há na cara de todo mundo, peça por peça.
Tarde abafada, incômoda, até umas poucas nuvens despejarem uns ticos d’água no chão quente. E lá veio aquele cheiro para me despertar, também, outros sentidos. Assim aguçada, a audição me trouxe o barulho no telhado e as batidas cadenciadas de pingos que ainda caíam da biqueira quando a chuvinha apressada já havia partido para os pontos seguintes do bairro.
Uma brisa leve balançou a rede que o segundo filho a mim dispôs no terraço da casa por ele adquirida à pequena distância do apartamento sem graça onde moro. Não há graça em moradias sem telhado nem biqueira. Vindo não sei de onde, um bando de pássaros tratou de perseguir insetos erguidos da vegetação rasteira à mudança rápida e inesperada do tempo.
Será que ele vê o que vejo? Perguntei-me com o olhar fixo no companheiro que se esticava na rede ao lado. Como o tempo corre. Eu o tinha no colo, não faz muito, ao que assim percebe o septuagenário que me tornei. Sem dúvida, os corações mais velhos desafiam a razão: sentem o cheiro das coisas e dão pulos no tempo.
O filho do meio e seus dois irmãos corriam em fraldas pela casa, ainda ontem. Aninhavam-se no meu peito ao fim das tardes, ouviam minhas histórias, contavam comigo os relâmpagos e trovões e me faziam adormecer, no mais das vezes, momentos em que escapavam deste cuidador incompetente para suas peraltices. A mãe, nessas ocasiões, não continha o riso.
Eu não disse? O petricor acaba de me transportar para a primeira metade da década de 1980. A propósito: eis uma palavrinha para lá de esquisita, um termo incapaz de traduzir por completo o cheiro da chuva, seu encanto e sua poesia. Um dicionário informa que isso é coisa de grego. Vem de “petra” (pedra) mais “icor” (fluido mitológico nas veias dos deuses). Vá lá, que assim seja.
A serenidade, a quietude, o repouso têm cheiro? Têm, sim, o da chuva quando bate em chão quente, ao que posso dizer por mim mesmo. Mas, de tanto gostar desse aroma, teimo em querer que todo mundo o perceba desse jeito.
É preciso, porém, que seja uma chuva branda a afugentar o sol. Que caia nuns restos de manhã, ou no transcurso das tardes. Que faça poças para o banho dos passarinhos, agrade os ipês, gameleiras e fícus das calçadas e praças, apresse o retorno das floradas e, no campo, amacie a terra para o plantio fácil das sementes.
É necessário que, assim requerida, a chuva faça rebrotar cada uma das nossas mais gratas lembranças: as que então me chegam e as suas, minhas amigas e meus amigos. Decerto, temos isso em comum, por mais distantes e diversos que nos sejam os costumes, o berço e a família. Gostamos dessas chuvas porque nos põem em paz, tangem nossos compromissos e problemas, trazem-nos de volta ao colo os filhos já crescidos e acalentam, ao mesmo tempo, a criança que já fomos.
Caída desse modo, em dia de sol, a chuva fala aos corações, conta histórias da carochinha como contavam as avós de antigamente. Uma delas, há quem lembre, a do casamento da raposa.
Foi assim: a bichinha endereçou convites à floresta inteira. Tomado por padrinho, o leão pediu que ela, entre o sol (símbolo de felicidade) e a chuva (de riqueza), escolhesse seu presente. Bem afoita, a raposa pediu as duas coisas. O leão achou tanta graça que assim concedeu. Descargas das nuvens em dia ensolarado? Pois bem, sempre que isso ocorrer há raposa se casando em boca de mata.
Um conselho: recontem essa história aos filhos pequenos, ou aos netos que tenham. Eles jamais esquecerão disso. E sempre estarão atentos ao cantarolar das biqueiras, à revoada dos pássaros, ao ribombar dos trovões (o arrasto de móveis por São Pedro na arrumação do Céu). E aprenderão que chuva fria em terra quente tem cheiro de harmonia, alegria e sossego. Nós todos, nestes tempos bicudos, andamos tão necessitados dessas coisas. Não é mesmo?