Em vários momentos da história isso ocorreu. Um personagem ocupa, durante determinado período, uma posição de grande destaque e, depois, desaparece, injustamente, nas brumas do tempo. Foi o que aconteceu com Silva Jardim, uma das figuras mais importantes para a instauração do regime republicano no país. Para o historiador Nelson Werneck Sodré:
Nelson W. Sodré
“Silva Jardim foi vítima de injustiça dessa natureza: brilhou em breve fase, ganhando um renome extraordinário, aparecendo como um dos heróis do instante, como das mais altas figuras da transformação política de que resultou a República. Sua atividade, quase toda oral, direta, voltada para o imediato, desapareceu com os contemporâneos, que a recolheram e acataram”.
Medeiros e Albuquerque (José Joaquim de Campos da Costa de Medeiros de Albuquerque, 1867-1934), escritor pernambucano, um dos idealizadores e fundadores da Academia Brasileira de Letras, vivenciou, no Rio de Janeiro, o período que antecedeu a queda da monarquia. O escritor foi o autor da letra do “Hino do Partido Republicano” que, por decisão do Governo Provisório republicano e com nova melodia do compositor Leopoldo Miguez passou a ser o “Hino da Proclamação da República” (“Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós”). Medeiros de Albuquerque também foi o secretário do paraibano Aristides Lobo no Ministério do Interior no primeiro Governo da República, credenciais que lhe dão autoridade para comentários precisos sobre a relevância do papel de Silva Jardim na mudança do regime político do país:
“Afinal, feita a Abolição, a propaganda republicana tomou incremento extraordinário, graças a Silva Jardim [...] é certo, absolutamente certo para todos os que viveram no Rio de Janeiro em 1888 e 1889 que, sem Silva Jardim, ninguém pensaria sequer nessa solução [...] Era ele que trazia diante de todos os espíritos a solução republicana como necessária, inevitável e próxima [...] Sem ele, afoitamente se pode dizer, a República não teria sido feita.
A maneira pela qual a República procedeu com esse grande, com esse estupendo propagandista, é uma página infame nos seus anais”.
A maneira pela qual a República procedeu com esse grande, com esse estupendo propagandista, é uma página infame nos seus anais”.
Barbosa Lima Sobrinho, político, escritor e um dos mais destacados jornalistas brasileiros, também reconhecia a importância de Silva Jardim na implantação do regime republicano no Brasil:
Barbosa Lima Sobrinho
“Silva Jardim foi, sem dúvida, a voz mais intrépida e o pensamento mais arrojado, com uma tendência radical, que o situa entre os quiseram fazer da República, menos um golpe para a conquista do poder, do que uma Revolução, empenhada na solução de problemas, que viesse alterar nossas estruturas políticas, sociais e econômicas
A influência de Silva Jardim foi muito grande, muito maior do que hoje se acredita ou se supõe. O trabalho para a criação de uma consciência republicana teve nele o seu melhor e mais autêntico operário
Os contemporâneos da fase da propaganda republicana nunca deixaram de realçar a participação de Silva Jardim e sobretudo a influência que exerceu junto à juventude, que desempenhou funções de vanguardeira do movimento, como acontece, em face das ideias renovadoras”
No período imediatamente anterior à implantação da República, a Monarquia brasileira passava por um grande desgaste. Para a historiadora Ângela Alonso, “Até a elite imperial duvidava do futuro. O imperador ocupava-se mais do periférico que do periclitante e, em inícios de 1887, a saúde o expulsou para a Europa, onde foi desenganado, em maio de 1888. Já a futura rainha, de marido francês e ultracatólica, não entusiasmou [...] Assinou a abolição, mas sem protagonismo quanto ao formato da lei”.
Naquele momento, os republicanos se movimentavam contrariamente à possibilidade de se ter um Terceiro Reinado no Brasil. Como o imperador Pedro II não tinha sucessores homens, no caso do seu falecimento a Coroa passaria para a Princesa Isabel, que era casada com um francês, o Conde d’Eu. Essa situação fazia despertar os sentimentos nacionalistas de grande parte da população com a perspectiva de um estrangeiro, mesmo que indiretamente, assumir o governo do país. Foi nessa conjuntura que a Câmara Municipal de São Borja, no Rio Grande do Sul, aprovou, em janeiro de 1888, uma proposição de consulta a outras Câmaras sobre a realização de um plebiscito para decidir sobre a extinção da Monarquia no Brasil quando ocorresse a morte do imperador. A propositura teve grande repercussão, o que fez com que o governo adotasse sanções contra os vereadores gaúchos.
Embora a sua importância na implantação do regime republicano no país seja amplamente reconhecida, Antônio da Silva Jardim, até o final do mês de janeiro de 1888, era ainda um obscuro advogado que havia se estabelecido, fazia dois anos, na cidade de Santos, onde também instalara uma escola de ensino primário e secundário. Silva Jardim foi menino pobre, filho de um agricultor, nascido em Capivari, localidade da Baixada fluminense (hoje município de Silva Jardim). Fez os estudos secundários em Niterói e no Rio de Janeiro, com muitas dificuldades, tendo se empregado no comércio para sobreviver. Aos 17 anos de idade, ingressou na Faculdade de Direito de São Paulo, e paralelamente trabalhou na imprensa local e exerceu o cargo de professor de Português na Escola Normal, se mudando, depois, para Santos.
No dia 28 de janeiro de 1888, uma conferência proferida por Silva Jardim no Teatro Guarani, em Santos, com o título “A Pátria em perigo” teve extraordinário impacto na grande assistência presente e fez com que as notícias sobre o evento ecoassem para os principais jornais do país. Foi somente a partir dessa conferência em Santos que Silva Jardim decidiu iniciar a propaganda republicana por diversas cidades das Províncias de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro, bancando, do seu próprio bolso, as despesas com esse périplo.
Em setembro de 1888, com o seu nome já consolidado como tribuno e propagandista da República, Silva Jardim fixou a sua residência na Capital Federal, se integrando no movimento republicano da cidade, escrevendo em vários jornais e participando como destacado orador nas manifestações populares. É do contemporâneo Medeiros e Albuquerque essa detalhada descrição da figura de Silva Jardim:
“Silva Jardim era pequenino, barbadinho, sempre vestido de preto, sempre metido em uma indefectível sobrecasaca. Quem, sem o conhecer, visse surgir no palco de qualquer teatro aquele gafanhotinho, não daria nada por essa figura insignificante.
Mas assim que começava a falar, havia um deslumbramento. Discutia e comovia. Nada de retórico palavroso: era um homem instruído, um argumentador poderoso [...] Começava os períodos em surdina, elevava pouco a pouco a voz, sustentando sem desfalecimento aquela mola imensa de frases, subia, subia, subia e, de repente, deixava enfim cair, como uma clava, esmagadora, a conclusão. – E havia uma tempestade de aplausos.
Ao lado disso, um espírito prodigioso de organização [...] Os meetings, os artigos de jornal, os ataques quotidianos à Monarquia só se sucediam infatigavelmente graças, sobretudo, à sua inspiração [...] Demais, todos lhe conheciam a coragem pessoal [...] Era essa coragem indomável de pena, de palavra e de ação que fazia de Silva Jardim um propagandista irresistível”.
Ao lado disso, um espírito prodigioso de organização [...] Os meetings, os artigos de jornal, os ataques quotidianos à Monarquia só se sucediam infatigavelmente graças, sobretudo, à sua inspiração [...] Demais, todos lhe conheciam a coragem pessoal [...] Era essa coragem indomável de pena, de palavra e de ação que fazia de Silva Jardim um propagandista irresistível”.
Atuando no movimento republicano do Rio de Janeiro, Silva Jardim demonstrou a sua coragem pessoal no enfrentamento às desordens que eram promovidas pela Guarda Negra em suas conferências. A Guarda Negra era uma milícia formada por ex-escravos agradecidos à Princesa Isabel pela sua libertação e atuando sob a proteção da polícia, que, conforme relatou Medeiros e Albuquerque, “os incitava a perturbar os ‘meetings’ republicanos, dando-lhes sempre fuga quando eram apanhados”. Para se contrapor à ação desses milicianos, segundo o escritor e jurista Evaristo de Morais, Silva Jardim tinha no operariado “fervorosos seguidores, sendo expressiva a dedicação de alguns homens de cor, de situações humildes, que se batiam nas ruas por ele”.
Um dos maiores feitos de Silva Jardim durante o período de propaganda da República deu-se, nos meses de junho e julho de 1889, quando de uma viagem do Conde d’Eu ao Norte do país com o objetivo de defender um possível Terceiro Reinado. Silva Jardim embarcou no mesmo navio do Conde, e durante as escalas da viagem, deixava a embarcação para fazer a sua pregação nas cidades. Mas, não foi fácil a tarefa do tribuno republicano. Em Salvador, tumultos promovidos por monarquistas impediram que ele falasse. No Recife, conseguiu fazer uma primeira conferência, mas a segunda não pôde ser realizada porque o delegado de Polícia da cidade se declarou incapaz de manter a ordem se o evento ocorresse. Impedido de falar no Recife, Silva Jardim viajou por várias cidades do interior de Pernambuco fazendo a propaganda republicana, entre elas Timbaúba e Goiana.
Quatro meses depois da passagem de Silva Jardim por Pernambuco, uma quartelada derrubava a Monarquia. O destemido tribuno da propaganda republicana foi esquecido nos acontecimentos da implantação do novo regime. Para Heitor Ferreira Lima, que escreveu um “Perfil Político” do propagandista da República”, a ausência do tribuno nos episódios do dia 15 de novembro seria justificada, em duas versões, por José Leão, o primeiro biógrafo de Silva Jardim. A primeira delas, a de que Benjamim Constant, um dos líderes do movimento, “teria mandado chamá-lo no dia anterior, não tendo sido encontrado”, explicação não muito convincente. A outra, mais aceitável, a de que ele não teria sido procurado por “tratar-se de republicano sanguinário”.
Com a instituição do Governo Provisório, Silva Jardim começou a ser descartado pelos “donos da República”. Coube a ele apenas participar de uma comissão encarregada de estabelecer as regras das eleições para a Assembleia Constituinte que iria elaborar a primeira Constituição republicana. Nas eleições, realizadas em 15 de setembro de 1890, Silva Jardim, que era o Presidente do diretório do Partido Republicano no Rio de Janeiro, foi candidato a deputado constituinte.
Governo Provisório: Aristides Lobo (ministro do Interior); Eduardo Wandenkolk (Marinha); Benjamin Constant (Guerra); Deodoro da Fonseca (presidente da República); Quintino Bocaiúva (Negócios Estrangeiros); Demétrio Ribeiro (Agricultura); e Rui Barbosa (Fazenda) ▪ Fonte: Wikipedia
Na véspera da eleição, o jornal carioca “O Paiz” publicou uma entrevista de Silva Jardim na qual o autor da matéria escreveu sobre o tribuno republicano: “se na historia da fundação da republica há um nome conhecido, é o intemerato propagandista, e o povo de certo não o esqueceu”. Ao ser perguntado pelo entrevistador sobre o futuro Congresso Constituinte, Silva Jardim respondeu:
“penso que deve limitar-se a votar uma constituição, eleger o chefe do estado, votar um orçamento, uma lei eleitoral e dissolver-se [...] para organizar-se a federação dos estados para o centro, mesmo porque me parece que com toda a boa vontade do governo central a eleição, pela intervenção dos governadores, não reflectirá a vontade nacional”
As declarações de Silva Jardim foram premonitórias porque a República não modificara as práticas eleitorais vigentes no país, persistindo as “mentirosas urnas” do tempo do Império, conforme as denominara o senador Zacarias de Góis, e a primeira eleição republicana não refletiu a “vontade nacional”, como afirmara na sua entrevista o líder republicano. Os “currais eleitorais”, os votos de ausentes e falecidos e as juntas de apuração com suas atas fraudadas impediram a eleição de Silva Jardim para a Assembleia Constituinte da República. Um jornalista seu admirador escreveu em um jornal do Rio de Janeiro:
“(Silva Jardim) foi o mais votado dentre todos para tomar assento no congresso, porém... o eleitorado não pôde impedir o movimento escandaloso das tricas eleitoraes, objecto esse que ainda existe para nossa vergonha, o que é para a historia sempre lastimar. Pelos votos que appareceram talvez por um milagre, conhece-se que foi bastante votado; e a não ser tão miseravel traição, tinhamos um deputado eloquente. Foi uma injustiça, é indubitavel, o que fizeram a Silva Jardim.”
⏤ "O Paiz", 9 de outubro de 1890 ⏤
Profundamente abalado com o resultado eleitoral que lhe foi adverso, Silva Jardim desligou-se do Partido Republicano e viajou para a Europa, onde pretendia ficar por cerca de dois anos. Em carta, encaminhada de Paris, ao escritor Alberto Torres (que também havia sido derrotado no pleito eleitoral) o propagandista republicano expunha a razão da sua viagem e o seu desencanto com os rumos que estava tomando a República:
“É um meio que tenho de, além de instruir-me, disfarçar a dor do exílio voluntário, em que sempre passam-se dias negros, e sombrios, principalmente quando se vê o sacrifício das ideias por que mais temos vivido”.
Depois de ter viajado por Portugal, França, Bélgica, Holanda e Inglaterra, Silva Jardim encontrava-se, em julho de 1891, na Itália e resolveu visitar Nápoles onde, acompanhado de um amigo, foi ver de perto o Vesúvio. O jornal “Estado do Parahyba” reproduziu notícia publicada no “Le Petit Journal” de Paris relatando o que ocorreu:
“A 1 de julho os dous touristas, acompanhados de uma guia, partirão a cavallo: chegarão ao pé do Vesuvio e puderão vencer a montanha a cavallo até o meio; depois tiveram que seguir a pé, por causa das crescentes difficuldades do caminho.
Chegados ao cume, na borda da cratera, forão os viajantes testemunhas de um phenomeno que assustou o guia. Vapores sahião do abysmo e vião-se fendas em alguns lugares. Não obstante, Silva Jardim e seus dous companheiros continuarão a caminhar [...] Mas, de repente, as fendas abrirão-se diante dos viajantes [...] Silva Jardim recusou-se a retroceder [...] Apenas tinha dado alguns passos o solo abrio-se.
Chegados ao cume, na borda da cratera, forão os viajantes testemunhas de um phenomeno que assustou o guia. Vapores sahião do abysmo e vião-se fendas em alguns lugares. Não obstante, Silva Jardim e seus dous companheiros continuarão a caminhar [...] Mas, de repente, as fendas abrirão-se diante dos viajantes [...] Silva Jardim recusou-se a retroceder [...] Apenas tinha dado alguns passos o solo abrio-se.