O relógio enlouqueceu! E não “acerta” mais parar de bater... Cansou de trabalhar por tantos anos, preso a uma parede, e agora vive do excesso, da balbúrdia, do desassossego, da efervescência! Nasceu há cento e dez anos. Adquirido na meia idade, foi restaurado por pessoa habilidosa, que esculpiu suas colunas torneadas. Seu nome de batismo, Junghans, natural das terras alemães... seu mostrador de porcelana e latão, ponteiros em flor-de-Lis... Sempre marcando pontualmente o tempo de acordar, sair, voltar, dormir, em algarismos romanos (com a característica de o número quatro se apresentar como "IIII", para fins de “proporção”). E, sem que nada o atingisse, uma vassoura, uma mão desavisada, porque as recomendações expressas de extremo cuidado com o idoso objeto não permitiriam... tudo para que não perdesse o ponto de equilíbrio... mesmo assim, enlouqueceu!
“O nosso espírito é feito de desordem,
acrescida de um desejo de ordenar as coisas”
(P. Valéry)
Revoltou-se sem causa, ou por muitas que não conhecemos, e desistiu de ter lógica e previsibilidade. Sua presença alardeava, de quinze em quinze minutos, com o som crescente, que a hora fechada se aproximava. Agora, todo tempo é tempo de bater. Somou todos os quartos de hora, e soa ininterruptamente, mobilizando uma angústia maior do que a observação de uma ampulheta. Esse relógio de areia, geralmente de vidro, foi inventado no século VIII por um monge francês. Atualmente, a ampulheta é usada como objeto de decoração, e até em tatuagens, significando a transitoriedade da vida. Olhar o movimento da areia fina descendo suave e continuamente é hipnótico e triste. Em cada grão há evidência do que foi perdido.
“As dimensões da angústia são caracterizadas
pelo encontro com o vazio do tempo”
(Thaís Klein)
O que acontecera com o marcador louco? Não é fácil enlouquecer! As máquinas podem apresentar arritmias, extinguir seus mecanismos, e “quebrar” homens cúmplices e dependentes...
Exatamente com cento e dez anos, o relógio da Matriz de Sant’Ana de Castro, Campos Gerais, funciona perfeitamente, sem cessar. A missão de “dar corda” passa de pai para filho, e ele corresponde precisamente à tradição. Poderíamos lembrar de relógios famosos no mundo: Big Ben; Tour de L’Horloge, em Paris; Orloj, em Praga; o Aukerhur, em Viena; o Hattori, em Tókio; o das Flores, em Viña Del Mar; mas estão distantes e ajuizados. Em Bananeiras, na torre da Matriz, ele bate com os sinos, num dueto musical sublime e regular. O som se estende à distância e, por vezes, disputa com os sinos do Mosteiro a sensação de paz e plenitude.
Para solucionar o problema do cantante, o mestre em consertos, especialista no tipo e modelo do relógio, foi convocado. Por horas a fio dedicou-se a avaliar sua caixa de peças e, por fim, levou-o para uma estadia de observação.
“O tempo morre sempre que é medido em estalidos,
Por pequenas engrenagens;
É só quando o relógio para que o tempo vive”
(W. Faulkner)
Após seu retorno, com restrições de expectativas, as horas passaram a duplicar. Às duas batia quatro, às quatro batia oito, e daí foi matematicamente ampliando a proporção para, enfim, não manter intervalos e entrar em modo de atividade sonora permanente. Será que aos cento e dez anos encerraria tão nobre percurso?
Poucos homens gozaram desta regalia de ultrapassar um século... outros se desencontram totalmente com o tempo, e ignoram e correm à margem dos estereótipos... jovens velhos, que sempre estão indispostos, que não se arriscam no novo e na aventura; e velhos jovens, que fazem da natureza e do movimento seus aliados, que não perseguem as novas fórmulas hormonais da juventude sem atravessar a angústia do tempo!
“Pergunte ao vento, à vaga, à estrela, ao pássaro,
A tudo que geme, a tudo que gera, a tudo que conta,
Pergunte que horas são”
(Baudelaire)
Para Mário Maldonado, o tempo só é sentido e apropriado pelas pessoas nas mudanças capazes de tirar o equilíbrio, e se torna opressivo quando a esperança de futuro deixa de existir.
A solução para libertar objetos-pessoas seria silenciá-lo definitivamente? E seguir Machado de Assis, que associava o relógio a um coração, e quem não o consulta, como alguém naturalmente fora do tempo? E viver sem orientação temporal?
Entre duas possibilidades, o bater desenfreado e o repouso, a lembrança e o esquecimento, o que seria mais saudável e menos neurótico para o obsessivo alemão e seus ouvintes? Haveria coragem de cortar as amarras do ouvido e sua escuta, dos pulsos e seus relógios, dos olhos e suas telas? Viver sem tempo marcado, quando o domingo teria a rotina da segunda-feira, e a noite iluminada se transformaria em dia, sem a obrigatoriedade dos compromissos agendados?
Quem sabe regular o ponteiro como uma flecha, apontando para as nove horas e lá fixá-lo, para que, escravo de todas as manhãs, submeta os passantes apenas a um olhar, saudoso do seu tic-tac tranquilo, e até do seu bater agitado, conduzindo os corações sincronizados e libertos para um novo registro das horas.
“Não desejei nem desejo nada mais do que
viver sem tempos mortos”
(Simone de Beauvoir)