No início de 1637, se aproximava de sete anos a presença dos holandeses no Nordeste brasileiro, mas a conquista da região pelos batavos ainda não estava consolidada. Os neerlandeses dominavam uma faixa litorânea, que não ultrapassava cerca de 70 km para o interior, que ia do Rio Grande do Norte até sul de Pernambuco, mas as forças hispano-luso-brasileiras haviam se fortificado em Porto Calvo, no atual Estado de Alagoas, de onde saíam grupos de guerrilheiros para atacar propriedades nas Capitanias ao norte.
Em 23 de janeiro de 1637, chegava ao porto do Recife João Maurício de Nassau-Siegen, como “chefe superior de prestígio” dos holandeses e com a “autoridade e o título de Governador Capitão-General e Almirante de Terra e Mar”, conforme anotou o historiador Francisco Adolfo de Varnhagen. Apesar de ser o nome que sempre é lembrado quando se fala do período do chamado Brasil holandês, Maurício de Nassau, como ficou aqui conhecido, não era holandês. Nassau nasceu em Dillenburg, cidade localizada na região central da Alemanha, e sua família tinha origens alemãs. Ainda muito jovem iniciara sua carreira militar nos Países Baixos, onde tinha parentes, e se destacara nas guerras dos neerlandeses contra o domínio espanhol. Não se pode deixar de levar em consideração que a ascensão de Nassau no exército batavo deva ser creditada, também, à sua proximidade com Frederico Henrique, o Príncipe de Orange, de quem ele era primo.
Embora Maurício de Nassau seja cultuado por alguns no Brasil, ao ponto de ter o seu nome dado a instituições de ensino no país, segundo o historiador Evaldo Cabral de Mello, “nos Países Baixos e na Alemanha, ele continua quase desconhecido, exceto por um punhado de especialistas, em especial da história da arte e da ciência, ao passo que não há muito interesse pelo seu papel de governador do ducado de Kleef, no norte da Alemanha, de marechal do Exército neerlandês [...] suas biografias contam-se nos dedos de uma mão”.
É um fato inquestionável que Nassau tivera educação humanística esmerada e teria sido durante a sua permanência no Brasil, nas palavras do historiador Leonardo Dantas Silva, “um Príncipe renascentista nas terras do Novo Mundo”, sendo responsável por algumas ações e realizações modernizadoras no Brasil, dentre elas, segundo Robert Chester Smith, historiador da arte e arquitetura brasileiras, tornar o Recife “a primeira cidade digna deste nome na América portuguesa”. Mas, apesar dessas credenciais, não se pode deixar de contrapor, aos que o vinculam como representante do que seria uma “colonização civilizadora”, o fato de que Nassau era um servidor contratado por uma companhia comercial neerlandesa, com todas as implicações daí decorrentes, cabendo, aqui, se atentar para a lição de Oliveira Martins, um dos mais importantes historiadores portugueses, citado por Luiz Felipe de Alencastro, outro conceituado historiador:
Oliveira Martins
“as companhias dos holandeses jamais criaram coisa alguma, a não ser um sistema hábil de rapinar o trabalho indígena, depois de terminado o período das rendosas piratarias. Saquear e entesourar, eis aí o propósito destas instituições, exclusivamente nascidas do espírito mercantil”.
Nassau veio para o Brasil com a missão de consolidar a conquista e recuperar a indústria açucareira na região dominada pelos batavos e, também, de unificar a administração holandesa local, cuja gestão até então era compartilhada entre um Conselho Político e os comandos das forças de terra e de mar. A ação mais imediata de Nassau foi conquistar Porto Calvo, onde estavam concentradas as forças de resistência que eram comandadas pelo Conde de Bagnuolo, um militar napolitano que estava a serviço dos espanhóis (na época, o reino de Nápoles estava subordinado à monarquia castelhana). A conquista da fortaleza de Porto Calvo e a expulsão das tropas hispano-luso-brasileiras para a margem direita do rio São Francisco, foram relatadas pelo português Frei Manoel Calado, contemporâneo dos fatos e autor de umas das principais obras sobre o período nassoviano (como foi adjetivado o tempo no qual Nassau permaneceu no Brasil):
“Informado o Conde de Nassau, João Maurício das coisas da terra, tanto que se aliviou da viagem do mar, desejoso de provar a mão com os portugueses, e exercitar o cargo em que vinha provido, ajuntou um exército de cinco mil homens, e uma grande turba de índios Pitiguares (que no Brasil, comumente chamam Caboclos) e por mar, e por terra pôs por obra o ir desalojar do Porto Calvo ao Conde de Banholo, e ganhar-lhe aquela praça”
O êxodo da população de Porto Calvo, em decorrência do ataque da tropa de Nassau, foi relatado por Frei Manoel Calado, que presenciou e narrou a comovente retirada:
“a multidão de gente de todas as idades que se ia retirando, assim por a praia, como por entre os matos, e o como iam deixando pelos caminhos as alfaias de suas casas, por não as poderem carregar; aqui os tristes ais dos meninos, os suspiros das mães, o desamparo das donzelas descalças, e metidas por as lamas, e passarem os rios com pouca compostura de seus corpos [...] o ver os amancebados levar a cavalo as mancebas brancas, mulatas e negras, ir deixarem ir suas mulheres a pé”.
Após a conquista de Porto Calvo, ainda na narrativa de Frei Manoel Calado, “chegaram os holandeses por mar, e por terra com todo seu exército ao rio de S. Francisco com cuja chegada o Conde de Banholo se passou da outra banda do sul, e foi marchando para Sergipe d’El Rei, aonde se aposentou. E o Conde de Nassau João Maurício chegando ao Penedo não passou da outra banda do rio, antes dali fez alto [...] e deu princípio a uma fortaleza que ali edificou [...] e depois de se deter ali dois meses, se tornou por mar para o Recife”.
Firmada a conquista militar da região, cabia a Nassau proceder à recuperação da produção açucareira que tinha sido bastante reduzida pelos estragos causados pelos guerrilheiros que queimavam os canaviais e destruíam os engenhos, e, também pela perda da mão-de-obra escrava, já que parte acompanhara os proprietários que deixaram a região, outra parte fugira para os quilombos e muitos escravos se incorporaram às forças locais ou mesmo às tropas batavas. Evaldo Cabral de Mello descreveu a situação:
Evaldo C. Mello
“Dos 150 engenhos existentes no Brasil holandês, a quase totalidade encontrava-se destruída pela guerra, seja completa, seja parcialmente nos seus canaviais, no equipamento fabril e na mão-de-obra africana. Ademais, quase a metade deles havia sido abandonada pelos proprietários, que tinham emigrado para a Bahia, para o Rio de Janeiro ou mesmo para o Reino. No total, cerca de 15 mil pessoas habitantes se haviam retirado, das quais um terço eram escravos”.
A recuperação da indústria do açúcar foi possível em virtude de certa paz que se estabeleceu, principalmente nas Capitanias mais ao norte, após a expulsão das forças de resistência para o lado sul do rio São Francisco. Engenhos dos proprietários que emigraram da região foram confiscados, leiloados e tiveram o seu funcionamento reativado. Embora, em 1637, cerca de 40% dos engenhos localizados nas várzeas do rio Capibaribe estivessem de “fogo morto”, a situação das instalações da Paraíba, situadas mais distantes do ambiente da guerra, era bem melhor. Para Evaldo Cabral de Mello, “na Paraíba, encerrado o conflito em 1635, a paralisação girava em torno de 25%; mas no final de 1637, já dezoito em vinte fábricas safrejavam, caso excepcional de reativação”. Segundo o historiador pernambucano, em 1639 a safra de açúcar na Paraíba voltaria a atingir praticamente o mesmo patamar (97%) da produção registrada antes da chegada dos holandeses ao Nordeste.
Maurício de Nassau implantou, também, conforme instruções que recebera da Companhia das Índias Ocidentais, uma nova organização administrativa na região que havia sido conquistada pelos batavos. Em carta enviada à Holanda Nassau relatava as providências que tomara:
“Como o littoral do Brazil conquistado pela Companhia estende-se por mais de 100 leguas, a experiencia tem mostrado que nos lugares longinquos as nossas ordens e recommendações não são tão promptamente executadas como o bom governo e a prosperidade da Companhia exigem; pelo que julgamos necessario collocar em differentes lugares como directores alguns dos conselheiros politicos, para que executem pontualmente as nossas ordens, nos informem ácerca do estado e das necessidades dos respectivos districtos, bem como contenham os moradores no seu dever. Os districtos creados são quatro: Parahiba, Itamaracá, Serinhaen ou Porto-Calvo e Rio São-Francisco”.
A estrutura judiciária e fiscal lusitana que ainda se mantinha nas cidades (Câmara, ouvidor, juízes de órfãos, almotacés, provedores da fazenda e outros cargos) foi substituída “por uma nova forma, semelhante a que se observa geralmente nas Províncias Unidas Neerlandesas”, conforme escreveu em um relatório Elias Herckmans, que assumira, em 1636, o governo da Paraíba. Como principal instituição da Capitania surgiu a Câmara de Escabinos, que substituía a antiga Câmara portuguesa. A Câmara de Escabinos, que era uma instituição adotada nos Países Baixos, foi modificada no Brasil holandês para incluir a participação dos habitantes locais e, segundo Evaldo Cabral de Mello, tinha função “exclusivamente judiciária, correspondendo a um tribunal civil e criminal de primeira instância”.A Câmara de Escabinos da Paraíba, eleita em agosto de 1637, foi uma das primeiras a serem constituídas no Brasil holandês e tinha, inicialmente, cinco membros, três portugueses e dois neerlandeses, sendo os escabinos escolhidos, conforme o relato de Elias Herckmans, entre “os indivíduos mais religiosos, capazes e qualificados” do lugar. No entanto, a composição da Câmara não era rígida, porque, no ano seguinte, a da Paraíba passaria a ser de três batavos e dois representantes locais e, em 1641, o seu número foi alterado, passando a ter sete membros.
As Câmaras tinham as suas insígnias, o seu brasão. Segundo um documento elaborado pelo Conselheiro holandês Adriaan van der Dussen, “o da Paraíba apresentava as formas piramidais dos pães de açúcar, ou por ser produtora de ótimo e estimadíssimo açúcar ou porque, passando para nós essa província, foi aí o maior trabalho dos engenhos e o preço do açúcar”. Segundo o escritor Câmara Cascudo, “o açúcar paraibano era famoso e o conde de Nassau fizera-o figurar no brazão d’armas por essa mesma excelencia”, o que fez com que o viajante inglês Henry Koster escrevesse, ao passar pela Paraíba duzentos anos depois do período nassoviano: “The sugar of the province is reckoned equal to that of any art of Brazil”.
Faziam parte, também, da administração local, curadores de órfãos e um escolteto que, conforme Elias Herckmans, era um cargo que tinha a função de “dar queixa contra os malfeitores e delinquentes, executar as sentenças, bem como as ordens e mandados da parte do governo”. Em toda a região sob o domínio holandês eram generalizadas as reclamações dos moradores com relação à atuação arbitrária e abusiva dos escoltetos, chegando ao ponto de uma petição enviada da Paraíba ter requerido do Supremo Conselho batavo a extinção do cargo.
Os neerlandeses haviam outorgado, em dezembro de 1634, quando da conquista da Paraíba, Capitulações que deveriam ser aplicadas à população do território que fora submetido à dominação batava. Esta Convenção que, depois, também viria a ser adotada em todo o Brasil holandês, dispunha, na sua primeira cláusula, sobre a tolerância religiosa ou, como expressava o documento, acerca da liberdade do “exercício de consciência”. Mas, cinco meses após a chegada de Nassau a Pernambuco e passados dois anos e meio da edição das Capitulações, era ainda restrita a liberdade do culto pelos moradores da Paraíba, que não conseguiam cumprir com as suas obrigações religiosas “do mesmo modo como tendes usado antes, frequentando as igrejas e praticando os sacrificios divinos, conforme os seus ritos e preceitos”, conforme estabelecido no Termo que fora concedido à população pelos holandeses.
Embora o historiador inglês Charles R. Boxer tenha afirmado que “durante os anos de govêrno de João Maurício a liberdade religiosa de que gozava o Brasil neerlandês era maior do que a existente em qualquer outra parte do mundo ocidental”, o próprio Boxer reconhecia que os predicantes e ministros da religião reformada “incessantemente procuravam cercear a liberdade religiosa formalmente garantida aos moradores” Uma resposta do Conselho Político da WIC, datada de 2 de julho de 1637, a um requerimento que fora encaminhado pelos membros da Câmara da Paraíba, demonstra a ocupação pelos batavos para os seus cultos da Igreja Matriz e do convento franciscano na sede da Capitania:
“em relação ao requerimento de uso da igreja matriz, que parecia ter sido abandonada por nós, por que nós não predicamos mais no edifício e passamos a usar o convento franciscano, ficou resolvido de se responder de acordo com a resolução do conselho dizendo que nós não planejamos sair da igreja Matriz, mas que nossos Pastores continuarão a predicar naquele local”.
No mesmo documento, os holandeses confirmavam que haviam ocupado, também, o convento beneditino: “Quanto ao requerimento de restituição do convento beneditino, que ocupamos e fortificamos, de onde evacuamos e destruímos as fortificações, visto que agora nos encontramos no convento franciscano, foi decidido que eles poderão se apossar de novo do mesmo”.
Em registro da mesma época, anotado pelo escritor Gaspar Barléu que, em 1647, publicou na Holanda uma obra encomendada e paga por Nassau sobre os seus anos no Brasil, se toma conhecimento de decisões do Supremo Conselho holandês no sentido de coibir certas manifestações religiosas na Paraíba, como a proibição “aos diretores da Paraíba o permitirem procissões e cortejos solenes de papistas pelas ruas e estradas, devendo encerrar-se nas igrejas e nos claustros” e a de “ser defeso, sem autorização do Conselho, construir novos templos”.
Após um ano no Brasil, Maurício de Nassau fez uma visita à Paraíba. Em carta enviada ao Príncipe de Orange informava que fora à Paraíba e ao Rio Grande “com ingentes rodeios, percorrendo por terra 135 léguas, para munir os lugares fracos e restaurar por toda a parte as fortificações desmanteladas”. Conforme o relato de Gaspar Barléu:
“Fez Maurício restaurar na Paraíba o forte arruinado do Cabedelo ou de Santa Catarina na Paraíba e guarnecê-lo com um fosso mais largo e mais fundo e, por cima, com uma coiraça. Mudou-lhe Nassau o nome para o de Margarida, como se chama sua irmã. Abandonou na margem setentrional do rio um outro forte – o de Santo Antônio -, por causa das grandes despesas, deixando ali somente uma torre para a defesa do lugar.
Mandou que os soldados cercassem com paus e estacas uma fortificaçãozinha – a Restinga -, e com uma trincheira o convento da Paraíba, procurando garanti-los contra os súbitos assaltos dos inimigos. Confiou essa incumbência a Elias Herckmans, diretor da Paraíba, homem que, além de muitas virtudes, era dotado de engenho agudo e dado ao cultivo da poesia holandesa”.
Mandou que os soldados cercassem com paus e estacas uma fortificaçãozinha – a Restinga -, e com uma trincheira o convento da Paraíba, procurando garanti-los contra os súbitos assaltos dos inimigos. Confiou essa incumbência a Elias Herckmans, diretor da Paraíba, homem que, além de muitas virtudes, era dotado de engenho agudo e dado ao cultivo da poesia holandesa”.
Por suposta orientação de Constantijn Huygens (pai do renomado físico Huygens), de quem era amigo e que era o influente secretário do Príncipe de Orange, Nassau formou um grupo de artistas e cientistas para acompanhá-lo ao Brasil, do qual faziam parte o médico Willem Piso e o astrônomo e cartógrafo alemão Georg Markgraf, que foi o primeiro a elaborar estudos astronômicos no hemisfério sul. Vieram, também, com Nassau os jovens pintores Albert Eckhout e Frans Post. Eckout se encarregou de registrar a fauna, a flora e os nativos e Frans Post pintou a paisagem da região Esse grupo teve grande importância no registro da vida do Nordeste brasileiro da época. Tomando-se como exemplo o caso de Frans Post, conforme o parecer de Bia e Pedro Corrêa do Lago, pesquisadores da sua obra:
“Frans Post, não só é o primeiro pintor da paisagem brasileira, mas também o primeiro paisagista das Américas. Ele ocupa, para a arte brasileira, uma posição de importância primordial como primeiro artista estrangeiro a descobrir nossa paisagem”.
Na visita de Nassau à Paraíba, em fevereiro de 1638, Frans Post muito provavelmente esteve presente, o que resultou na produção de gravuras (quatro delas foram incluídas na obra de Gaspar Barléu) e pelo menos uma tela conhecida, “Frederikstad”, de 1638, representando a Cidade da Paraíba (a Cidade Frederica dos documentos holandeses), pertencente, atualmente, à Fundación Cisneros, de Caracas, Venezuela, que a adquiriu em leilão, em 1997, por mais de quatro e meio milhões de dólares.
Como uma curiosidade, registro que coube ao paraibano Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque, o Visconde de Cavalcanti, trazer para o Brasil a primeira tela pintada por Frans Post. Diogo Velho deixara o país quando da queda da Monarquia e se fixara na França. Segundo Pedro Corrêa do Lago, o Visconde de Cavalcanti teria adquirido o quadro “Ruínas da Catedral de Olinda” em Paris por volta de 1894. Tempo depois, o Visconde retornaria ao Brasil, tendo falecido em 1899. Em 1926, a sua família fez a doação da tela de Frans Post para o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro-IHGB, no Rio de Janeiro, onde até hoje se encontra. Para Pedro Corrêa do Lago, a tela que mostra as ruínas da Sé de Olinda “é indiscutivelmente a obra de arte de maior valor do IHGB”.