Nos poemas longos de Augusto dos Anjos, o desafio de leitura se impõe, sendo muito maior do que o observado nos sonetos. É o caso de ...

“Na câmara promíscua do vitellus”

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Nos poemas longos de Augusto dos Anjos, o desafio de leitura se impõe, sendo muito maior do que o observado nos sonetos. É o caso de “As Cismas do Destino”, poema de 4 partes, contando com 420 versos, em que, o eu-poético, em estado alucinatório ou de delírio, percebe, na lubricidade e na animalidade humana, o atraso na espiritualidade de seres levados pelo instinto.

Já na primeira parte do poema, temos a dimensão do desconforto e da aflição do eu, no nojo expresso diante de uma humanidade violadora das leis da natureza. Trata-se de profundo asco por tudo que o homem, voltado para a materialidade lhe provoca. Nesse paroxismo aflitivo, ele chega a automutilar-se, revelando a situação de desequilíbrio em que se encontra (Parte I, estrofe 25, versos 97-100):

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Chegou-me o estado máximo da mágoa!
Duas, três, quatro, cinco, seis e sete
Vezes que eu me furei com um canivete,
A hemoglobina vinha cheia de água!

Na segunda parte, a escuridão e as trevas, elementos característicos da densa ambientação em que mergulha a personalidade do eu, agudizam a visão do seu delírio, tendo ele a consciência de uma espiritualidade estagnada, vendo na morte a única solução que lhe permitirá “despir a putrescível forma tosca” (estrofe 38, verso 149) da matéria aprisionando a alma. A aflição se renova e se intensifica, na incapacidade ou, ao menos, na grande dificuldade de expressão linguística, outra característica essencial de sua personalidade (estrofes 39-40, versos 153-160):

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
A alma dos animais! Pego-a, distingo-a, Acho-a nesse interior duelo secreto Entre a ânsia de um vocábulo completo E uma expressão que não chegou à língua!

Surpreendo-a em quatrilhões de corpos vivos, Nos antiperistálticos abalos Que produzem nos bois e nos cavalos A contração dos gritos instintivos!

Compreendendo que a evolução da espécie vem da matéria inorgânica para a formação da matéria orgânica, o eu-poético também está ciente de que se aconteceu uma evolução do ponto de vista material, ela não ocorreu na perspectiva da humanização, mas da criação de uma “humanidade parasita” (estrofe 48, verso 190). De que adiantaram os esforços no sentido de uma evolução, em que os “tipos/ontogênicos mais elementares” se revoltam, “desde os foraminíferos dos mares/à grei liliputiana dos pólipos” (estrofe 44, versos 173-6), se a degradação do homem, a matéria que o aprisiona, a prostituição que ele fomenta o tornam um ser absolutamente em atraso, estagnado num nível de degradação incompatível com a sua condição de animal que raciocina, vivendo a condição de “um amniota subterrâneo”? Vem dessa contradição a sensação do seu desconforto, como vemos a seguir (estrofe 50, versos 199-200):

E eu me encolhia todo como um sapo Que tem um peso incômodo por cima!

Existe no eu-poético, além da consciência da evolução da espécie (pólipos/foraminíferos/amniota/sapo/homem), a clareza de que todas as coisas e todos os seres estão devidamente articulados. A quadra, a seguir (estrofe 42, versos 165-8), expressa, com alto grau de poeticidade, como o orgânico procede do inorgânico:

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Nessa época que os sábios não ensinam, A pedra dura, os montes argilosos Criariam feixes de cordões nervosos E o neuroplasma dos que raciocinam!

Trata-se da assimilação do pensamento de Ernest Haeckel, em Os enigmas do universo (Les énigmes de l’univers, Paris, Hacehtte/BNF, 1902, em tradução nossa), para quem o protoplasma do espermatozoide e do óvulo, criam, na fecundação, o óvulo dotado de plasma. O neuroplasma, contudo, só estaria presente nos animais considerados, então, superiores – répteis, pássaros e mamíferos, pela ordem (Capítulo VI, Da natureza da alma, p. 108-10):

“O corpo orgânico é uma essência mortal, material, quimicamente constituída por plasma vivo e por compostos engendrados por ele (produtos protoplásmicos). [...] Designaremos provisoriamente essa base material de toda a atividade psíquica, sem a qual essa atividade não é concebível, – sob o nome de psicoplasma e isso porque a análise química no-la mostra por toda a parte como um corpo do grupo dos corpos protoplasmáticos, isto é um desses compostos do carbono, desses albuminoides que estão na base de todos os processos vitais. Nos animais superiores, que possuem um sistema nervoso e órgãos dos sentidos, o psicoplasma, diferenciando-se, deum um neuroplasma. A substância nervosa.”

Infelizmente, para desespero do eu-poético, essa evolução descamba para a degradação, gerando o desequilíbrio que o atormenta, e, assim como a Sombra monologa (“Monólogo de uma Sombra”), o Destino dialoga com ele, num “eco particular” (estrofe 62, verso 248). É o passo que abre a terceira parte do poema: o Destino, devidamente personificado,
augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Shiko
aponta ao homem a dor, como essência da vida; as trevas, a guerra, o ser colérico que ele é, o mundo como “orbe feraz” (estrofe 72, verso 285), em que se trava uma guerra “entre o dragão do humano orgulho/e as forças inorgânicas da terra!” (estrofe 84, versos 335-6). Nessa luta, a morte, que lhe aparece como “a hora tranquila” (estrofe 95, verso 377), cumprirá, mais uma vez, o ciclo evolutivo, enquanto o homem não se desapegar da materialidade.

Na última parte do poema, ao ter conhecimento de que, ele próprio, como ser humano, é o causador de sua desgraça o eu-poético mostra-se novamente em estado aflitivo, expressando dor e sofrimento, diante dessa revelação (estrofe 101, versos 401-4):

Secara a clorofila das lavouras. Igual aos sustenidos de uma endecha, Vinha-me às cordas glóticas a queixa Das coletividades sofredoras.

Tudo falhara, o mundo invertido em seus princípios pelo homem degradado vê a falência da sociedade que o cerca. O apego do homem à materialidade lhe nega o equilíbrio. Tudo foi um grande engano, a materialidade é árvore sem frutos e ao homem não resta senão
augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
SoWhat
“a canção prostituta do ludíbrio” (estrofe 105, verso 420).

“As Cismas do Destino” é um dos primeiros poemas de Augusto dos Anjos a se preocupar em mostrar essa dissociação entre evolução da espécie e evolução espiritual, ao mesmo tempo, em que o grande esforço das leis das naturezas, em criar vida, termina por tornar-se inócuo, devido ao fim degradado para o qual o homem trabalha nesta vida. Trata-se de um poema ímpar, no sentido de que a sua construção tecida em torno da fecundação e geração de vida animal, mais especificamente humana, está circunscrita ao contexto da evolução da espécie, em que o inorgânico se torna orgânico, conforme já vimos: o raciocínio é um processo refinado da transformação da “pedra dura” e dos “montes argilosos”, em “feixes de cordões nervosos” (Parte II, estrofe 42, versos 165-8. Veja-se, por exemplo, os dois sonetos “As Montanhas”, de Outras poesias).

Como já afirmamos em outros ensaios, Augusto dos Anjos vai beber em Ernst Haeckel e, mais especificamente, em Os enigmas do universo. O cientista alemão reconhece como o estudo e o conhecimento da química transformou a nossa compreensão acerca da vida, proporcionando-nos a compreensão de que a dualidade entre orgânico e inorgânico não é senão ilusória, pois o carbono se torna o elo entre estes dois estados, aparecendo como
augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Stoodi
“a química da vida”, expressão ratificada posteriormente por Richard Dawkins, ao dizer que o carbono era “o andaime da vida” (A magia da realidade, São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 92). Vejamos o que nos afirma Haeckel (Capítulo Primeiro, Como se estabelecem os Enigmas do Universo, p. 5, tradução nossa):

“A química nos fez conhecer uma quantidade de substâncias antigamente desconhecidas, constituídas todas por um agregado de alguns elementos irredutíveis (cerca de setenta) e dos quais alguns tomaram, em todos os domínios da vida, a maior importância prática. Ela nos mostrou em um desses elementos, o carbono, o corpo maravilhoso que determina a formação da infinita variedade dos agregados orgânicos e que, por consequência, representa a base ‘química da vida’”.

Augusto segue a pista da evolução da espécie, para depois retornar aos pródromos da gestação e formação do embrião humano (Parte II, estrofe 54, versos 213-216):

Fabricavam destarte os blastodermas, Em cujo repugnante receptáculo Minha perscrutação via o espetáculo De uma progênie idiota de palermas.

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
USP
Veja-se o que diz Haeckel a esse respeito, citando Karl Ernst von Baer, que em 1828, avançado nos estudos da embriologia, descreveu a formação do embrião, no homem e nos vertebrados:

“Baer foi o primeiro que percebeu, ainda, que em todos os Mamíferos, esses pequenos ovos fecundados, desenvolvendo-se, resultam, inicialmente, no nascimento de uma vesícula germinativa característica, uma Esfera vazia contendo um líquido, cuja parede é formada pela fina camada embrionária: o blastoderma” (Capítulo IV, Nossa embriologia, p. 67).


Na criação de “As cismas do destino”, Augusto dos Anjos retorna ao processo de fecundação e gestação, num vai-e-vem dentro do poema, de forma a mostrar que a nossa degradação começa com a degradação do sexo, na forma mais vil que se pode conhecer, que é a prostituição. Esse passeio pelo poema foi necessário para que pudéssemos contextualizar a estrofe 8 (parte I, versos 29-32), que dá o título deste ensaio:

Livres de microscópios e escalpelos, Dançavam, parodiando saraus cínicos, Bilhões de centrossomas apolínicos Na câmara promíscua do vitellus.

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
@FábioPinto
Através do eu-poético, vemos a descrição da fecundação, proveniente do “trabalho genésico dos sexos” (estrofe 7, verso 27), produto dessa “fábrica terrível” (estrofe 10, verso 40), que é o sexo, de que todos os seres vivos são originários, sobretudo os da espécie animal. Ainda movidos pelo instinto básico que lhe é característico, o ser humano atende às necessidades das ordens fundamentais inscritas em nosso código genético – sobreviver e passar seu gene adiante. O Augusto leitor de Haeckel e da teoria da evolução da espécie revela, então, nessa estrofe muito mais do que o que alguns conseguem alcançar. Com a consciência de utilizar-se de uma linguagem científica, cujo sentido ele conhece, ele a transfigura poeticamente, dando-lhe uma
augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Augusto dos Anjos Picryl CC0
significação nova, em perfeita simbiose com a criação poética. Este é o “lavor de joalheiro”, ironizado por Bandeira, em “Os Sapos”, numa alusão direta a Olavo Bilac, em “Profissão de Fé” – “lavor do verso” –, em um contexto que não exclui, ele mesmo, Bandeira, como um exímio ourives na garimpagem de seus versos. Em suma: a pedra bruta, através do refinamento da lapidação, se engasta em outra matéria plasmada – o ouro, a prata –, de modo a se transformar em joia, ganhando, portanto, outra significação.

O vitellus nos mamíferos placentários, como nós, existe, mas em pequena quantidade, tendo a função de nutrir o feto antes que ele se fixe ao útero, momento a partir do qual passará a receber a alimentação proveniente da placenta da mãe. Como veremos, na afirmação abaixo de Haeckel, existe um ambiente propício para a mistura do óvulo e do espermatozoide venha acontecer, no “disco germinativo”, daí a expressão “câmara promíscua” que, na dimensão poética de Augusto dos Anjos, tanto diz da natureza intrínseca do ambiente em que se encontra o vitellus, quanto diz das condições do apego do homem à materialidade e ao sexo pelo sexo, como já se viu anteriormente, na caracterização do Sátiro peralta, de “Monólogo de uma Sombra” (estrofe 16 e ss). No ser humano, após a fecundação nessa câmara propícia, forma-se a cítula, a célula-mãe, início de todo o processo de criação de um ser vivo, a partir dessa única célula fecundada (Capítulo Segundo, Como é construído o nosso corpo, p. 31).

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Alberto Kandra
O poeta emprega, na estrofe em estudo, a teoria da epigênese, termo que lhe é caro (v. “Psicologia de um vencido”, “Os doentes” e “Mistério de um fósforo”), formulada na tese de doutorado de Caspar Friedrich Wolff, em 1758. A epigênese aparece para se opor à teoria da pré-formação do feto. O trabalho de Wolff se baseia nas muitas e cuidadosas experiências de observação e estudo do ovo da galinha. Após a incubação, não há, no início, diz Haeckel, como saber o que virá a ser o corpo da ave e das suas diferentes partes:

“em lugar disso, no entanto, nós encontramos no alto, sobre a esfera amarela do vitellus, um pequeno disco circular, branco. Esse disco germinativo torna-se oval e se subdivide então em quatro camadas situadas uma acima da outra e que são os esboços dos quatro sistemas mais importantes de órgãos; inicialmente, o mais superficial, o sistema nervoso; abaixo, a massa carnuda (sistema muscular); em seguida o sistema vascular (com o coração) e enfim o canal intestinal. Assim, dizia Wolff com razão, a formação do foetus consiste, não pelo desenvolvimento de órgãos pré-formados, mas dentro de uma cadeia de neoformações, em uma verdadeira ‘epigênese’; as partes aparecem uma após a outra e todas sob uma forma simples, absolutamente diferente daquela que se desenvolverá mais tarde: aquela se produz por uma série de transformações maravilhosas” (Capítulo IV, Nossa embriologia, p. 65-6).

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Louis Boulanger
Retornando à estrofe, vemos que a fecundação se dá num processo seguro, longe da visão humana e longe dos bisturis (escalpelos), cuja divisão celular (centrossomas) de modo equilibrado (apolínicos) é necessária para que, de uma única célula, resulte um ser multicelular extremamente complexo como o ser humano, este notável processo se chama epigênese (Capítulo VIII, Embriologia da alma, p. 156). O irônico é o fato que tanto trabalho da evolução terá como resultado a degradação, já anunciada nessa divisão celular no verso “dançavam, parodiando saraus cínicos”.

A grandeza da criação poética reside na ambiguidade que o poeta empresta ao termo “câmara promíscua”, que deixa de ser apenas um ambiente propenso à mistura, abrigando o óvulo fecundado e fornecendo alimento para a célula daí resultante, para se tornar um ambiente de promiscuidade, com o sentido que se empresta ao termo atualmente, de relacionamento sexual sem critérios e com muitos parceiros. Para a câmara que abriga o vitellus, fundamental no processo da fecundação da vida, pouco importa se a vida que dali surgirá é oriunda de uma relação sexual ideal ou de uma relação sexual degradada. Algo promíscuo é, antes de tudo, algo que se mistura para ir em frente (do latim, pro + miscĕo, miscēre), o que o corre na câmara do vitellus. A ordem que se estabelece no DNA é que, havendo as condições necessárias, que ali ocorra, então, a nutrição necessária para a fecundação seguir adiante. Associar essa propensão com a degradação sexual é ampliar o sentido saindo do puramente científico para o campo da criação poética.

augusto anjos cienca evolucao eu poesia paraibana
Claude Gillot
Para finalizar, o poeta nos dá uma aula de composição formal do verso. Não lhe basta criar uma significância para significados já existentes, é preciso também revelar competência na arte da métrica e do ritmo. Perceba-se que é a consciência da forma do verso que faz o poeta decidir-se por “Na câmara promíscua do vitellus”, em lugar de “Na promíscua câmara do vitellus”. Ambos, no concernente à medida, pura e simples, são decassílabos. Mas, se tomarmos como parâmetro o ritmo que, na realidade é quem estabelece o metro, só a primeira forma é um decassílabo heroico, ternário, com pausa na 2ª, 6ª e 10ª sílabas:

Na CÂmara proMÍScua do viTEllus

A segunda possibilidade mostra que ter dez sílabas não é o suficiente para um verso ser chamado decassílabo. Em “Na promíscua câmara do vitellus”, a segunda pausa cairia na 5ª sílaba, /mara/, em lugar de na 6ª. Além do mais, há um encontro entre /CUA/ e // (na promísCUA mara do vitellus) que compromete não só o ritmo, mas também a eufonia do verso.

Para quem tem dúvidas sobre o poeta que é Augusto dos Anjos é, este poema nos dá uma prova irrefutável de sua grandeza na habilidade de harmonizar fundo e forma.

N.E.: Este é o 200º texto publicado pelo autor neste espaço literário

COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também