Resolvi fazer uma visita ao centro de João Pessoa, motivado pela leitura do livro A primeira rua da capital paraibana , de Guilherme G...

Itinerário afetivo

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Resolvi fazer uma visita ao centro de João Pessoa, motivado pela leitura do livro A primeira rua da capital paraibana, de Guilherme Gomes da Silveira d'Avila Lins, meu amigo e confrade da Academia Paraibana de Letras. Menino, andei muito por aquelas ruas, levado pelo meus pais, em passeios ou obrigações. Adolescente, trabalhando como ajudante de serviços gerais, no escritório de um dos cunhados, situado à rua do Riachuelo, o centro da cidade virou para mim um conhecido íntimo, no vaivém das idas aos Correios, bancos e entregas de mercadorias, nas várias artérias que cortam o velho centro histórico. O livro de Guilherme me renovou a vontade de retornar ao centro e percorrer a Rua Nova, hoje General Osório, a primeira rua, que dá título a seu livro.

Rua Nova
Ali, relembrei a Festa das Neves e seus tempos áureos, o tempo em que passei como professor do extinto Colégio Regina Coeli, e como gostava de descer a ladeira São Francisco, para desfrutar de um bar que existia na Casa da Pólvora. Boas lembranças do tempo de menino e de rapaz. O crescimento de João Pessoa deu independência aos bairros, afastando as pessoas do centro da cidade. Mantive, ainda por um tempo, o máximo que pude, para não perder o vínculo, a minha conta no Banco do Brasil da Praça 1817. Não era, contudo, a mesma coisa. Mesmo retornando ao centro, com frequência sabática, para reunir-me com amigos na Livraria do Luiz, não me sentia motivado a ir além da visita aos sábados, diante da dificuldade de encontrar estacionamento e da degradação por que já passava aquela região, sendo tudo muito desmotivador. A pandemia veio e isolou a todos, rompendo o meu reencontro da João Pessoa da minha meninice e juventude.

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Praça 1817
Eleito, em 2020, para a Academia Paraibana de Letras, passei a frequentar o miolo histórico, com mais assiduidade. Mas foi o livro de Guilherme, repito, que me motivou a percorrer as ruas e prestar atenção nos detalhes, que me foram muitas vezes mostrados pelo meu pai. Carteiro e açougueiro, meu pai era um homem que gostava de ler e de saber da cidade que o adotara desde criança. Muitas histórias que tenho na cabeça, sobre a nossa cidade foram por ele contadas. Revivi algumas nessas andanças atuais.

Nessa volta para ver com detalhe o centro de João Pessoa, fazendo o percurso da Academia ao Mosteiro de São Bento, passando pela catedral, descendo, até certo ponto,
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Ladeira de S. Francisco
Antiga Casa da Câmara
a Ladeira Borborema e a Ladeira São Francisco, vi-me, ao retornar, na rua Vigário Sarlen. Achei o nome estranho, mas não de todo desconhecido. O meu interesse era ver os fundos do mosteiro, em que funcionaram a mais antiga Casa da Câmara de nossa cidade, a cadeia e o açougue velho. Hoje, um estacionamento de um anexo do São Bento. O meu objetivo era ver, da perspectiva de quem desemboca da Ladeira Borborema, os dois caminhos principais que davam para o varadouro do Rio Sanhauá – as duas já citadas ladeiras –, tendo a visão da lateral e da fachada da Catedral dando para a Rua Nova, aberta com a necessidade de chamar o povoamento para a parte alta da cidade, que começava lá embaixo, no rio. Dessa situação geográfica, Guilherme nos faz uma bela síntese:

“Recapitulemos, pois, o que já ficou dito. Naqueles primeiros tempos quem, vindo da planície junto ao varadouro do Rio Sanhauá, chegava à Rua Nova pela ‘rua q’ Vay para o Varadouro’, atual Ladeira Borborema, tinha à mão esquerda o frontispício da Igreja da Matriz de Nossa Senhora da Neves, e à mão direita a fachada da Casa da Câmara compreendendo a Cadeia e o açougue velho.”
A primeira rua da capital paraibana, p. 105
Ladeira da Borborema
A leitura do livro e esta visão me deram uma nova concepção de João Pessoa, que se arraigou ainda mais nas minhas memórias afetivas. Como disse, nesse passeio, o nome da rua Vigário Sarlen, chamou-me a atenção. Para os que não estão atualizados com essa geografia, a dita rua começa na lateral direita da Catedral, se estivermos olhando para a sua fachada, e segue direto até a Visconde de Pelotas, passando pelo Cruzeiro, pelo antigo Colégio Pio XII e pela entrada principal da Academia Paraibana de Letras. O trecho, em que a rua começa, ao lado da catedral, se chama Praça D. Ulrico.

Praça Dom Ulrico
Estranhando o nome Sarlen, voltei ao livro de Guilherme sobre a nossa primeira rua e lá constatei encontrar-se o nome do vigário em questão. Trata-se do “padre João Vaz Salem, primeiro vigário da Igreja Matriz de Nossa Senhora das Neves” (p. 101), grafado, de acordo com o que consta no documento da primeira visitação do Santo Ofício, a mim cedido por Guilherme, João vaaz Salẽ ou João vaaz Salem. Nesse documento, o padre aparece como denunciante, fazendo a ratificação da denúncia sobre a bigamia do beneficiado da Igreja Matriz do Salvador, de Olinda, de que ele era o vigário, com o qual
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Fonte: d'Avila Lins
ocupando a condição de padre adjunto do vigário, ele se indispôs, por ser de origem cristã-nova.

O documento traz um autógrafo do padre, ao lado da assinatura do visitador Heitor Furtado de Mendoça (normalmente desvirtuado para Mendonça), na primeira visitação do Santo Ofício na Paraíba (1595). Nele, lê-se com facilidade o seu nome: João vaaz Salem.

O padre era um homem ganancioso, que tinha o privilégio de passar até seis meses fora de sua vigairaria, preando índios para vender. Tinha como único bem uma casa confiscada pela Câmara, mas o confisco não tem qualquer relação com a Inquisição, conforme o próprio Guilherme d'Avila Lins, nos informa em outro livro:

“O padre João Vaz Salem, e não “João Vaz de Salem”, em que pese o seu caráter bastante discutível, prestou ali uma denunciação espontânea contra terceiros, jamais foi denunciado ao Visitador ou intimado por ele, portanto não se pode dizer levianamente que aquele vigário foi alcançado ou atingido pela Inquisição.”
O clero secular e regular nos primórdios da paraíba, p. 7

Muito do dinheiro que o padre ganhava era oriundo da escravização de índios, como relata Guilherme, vendendo-os por preços excessivos, embora, de acordo com os documentos, não se pudesse dizer que o padre ganhava mal. A partir de março de 1590, João Vaz Salem “passou a ganhar 200$000 réis por ano,
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M. Marques Jr
o que representava uma respeitável remuneração para aquela época” (O clero secular e regular, p. 13).

Ora, à parte toda a ganância do padre, as suas ausências da paróquia e da Capitania, o que, no dizer de Guilherme, fez a Paraíba “muito mal servida de assistência religiosa no que diz respeito ao clero secular” (id. p. 13), acreditamos estar diante de uma injustiça que deve ser reparada. É fato histórico, e de muita importância, que João Vaz Salem foi o primeiro vigário de nossa cidade. Não podemos deixar que o seu nome venha grafado errado na placa da rua que procura fazer-lhe uma homenagem. As autoridades competentes deveriam se preocupar com a mudança do nome, corrigindo a grafia, colocando o seu nome completo e também fazendo a indicação de sua primazia como vigário da cidade de Nossa Senhora das Neves. Não se trata apenas de fazer justiça, mas também de deixar mais à mostra a nossa história, esclarecendo os nossos moradores e os turistas que circulam no centro histórico de nossa querida capital.

Se tivermos cuidado, ainda que apenas informativo, com a nossa história, acredito que isto contribuiria para que todos avivassem em si, assim como eu, o itinerário afetivo de suas memórias.

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  1. Alexandre Pimentel29/4/23 12:09

    Eu acho que, no lugar de consertarem o nome do padre, deviam pensar em restabelecer a denominação original e histórica da rua.
    Afinal, esse sacerdote Sarlen ou Salem não é flor que se cheire.
    Parabéns pela crônica. Parabéns pelo relato. Parabéns pela inspiração, encontrada em sua própria memória e no livro do amigo e confrade.

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  2. Obrigado, Alexandre, pela leitura e comentário.

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  3. Anônimo2/5/23 07:30

    Padre estranho como eram todos que praticavam o escravismo. Imagina se até a igreja praticava quem mais não fazia?

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