A Juca Pontes, in Memoriam
Juca, meu querido, das cartas que escrevi para os amigos, esta será a primeira a ser lida pelo destinatário, antes de sua publicação. Por ter uma compreensão da vida diferente do habitual das pessoas, o que não me isenta de sentir tristeza pela sua partida, tenho certeza de que, na espiritualidade, onde você se encontra, você nos acompanha e saberá perdoar a minha incompreensão.
Por ocasião de nosso último encontro, fortuito para a nossa visão de mundo material, mas bem marcado no mundo espiritual, tive a satisfação de conversar um pouco com você e de dar e receber um abraço, acompanhado sempre pelo seu inefável sorriso. Infelizmente, meu amigo, compreendi e não compreendi o que você me disse, à nossa despedida: “Estou esperando...”. Compreendi que você estava esperando o texto que eu prometera sobre o seu livro, Itacoatiara, recentemente publicado, e que eu recebera com uma amável dedicatória. Antes de nosso encontro recente, em conversa rápida, nos corredores da Academia Paraibana de Letras, eu lhe disse que o seu livro era uma preciosidade, uma obra de arte e que eu iria escrever sobre ele.
Realmente, Juca, o livro é obra de arte, e me deu uma grande dificuldade para ler. Não porque se possa dizer que sua poesia é hermética e incompreensível ou que ela não tenha me tocado intimamente. Quando recebi o pacote e vi o livro, ao folheá-lo, senti a emoção de estar diante de um volume a ser venerado, dado o refinamento sem exageros e sem artificialidade com que ele foi produzido, e que traduzia o seu toque de editor. Residiu aí a minha dificuldade na leitura, querido Juca: para mim é difícil, muito difícil, ler um livro sem riscá-lo, sem sublinhar o texto, sem fazer algum comentário marginal, comentário crítico ou puramente emotivo. Como riscar o papel trabalhado como se fora fino mármore, fazendo ressurgir dali a pedra pintada do Ingá, essa Itacoatiara sagrada, mas tão desprezada, tão abandonada pela memória cultural de nosso país? Sua poesia e as gravuras de José Rufino, em tom perolizado e marmóreo – “Graphos/em pérola” –, ressuscitam a pedra e fazem o que os poderes públicos não conseguem, por falta de conhecer a importância que a itacoatiara tem: este trabalho duplo de poeta e artista plástico fixa na nossa memória a beleza da expressão comunicativa que ali se encontra e cuja gravação se perde no fluir do tempo e do rio que a banha.
Lembro que, quando escrevi sobre o seu livro anterior, livro em parceria com Flávio Tavares, Mar de olhar, eu disse que capa de livro e as outras formas que estão em comunhão com ele, tudo também era texto. Reafirmo o que disse, acrescentando que, assim como as gravuras de Flávio, as fotogravuras de José Rufino se aliam a seu texto e ajudam a produzir os novos sentidos para a pedra tão vista, mas tão pouco conhecida e, menos ainda, reconhecida na sua importância. Trata-se, enfim, de uma maravilha, este
Recorte
e escrita
de antiga
cripta.
O seu livro, Juca, assim como a pedra, é Itacoatiara, cujo nome, conforme atesta o tupi antigo clássico, significa “pedra pintada ou debuxada”, termo atestado pelos padres jesuítas, desde 1757. Você bem sabe disso, e sabe tanto que a poesia vai além da pintura ou do debuxo, com o intuito de expressar informação do profano ou do sagrado. A sua poesia, Juca, sabe compreender o sentido do sagrado que já se encontra poeticamente, no nome da pedra, ao se tomar o -ara, com a liberdade da poesia, não mais como parte integrante da etimologia da palavra indígena, mas como o nome latino, para designar o altar:
Surdos
agudos
sopram metálica
sinfonia
em sincronia
com o altar
da Pedra
do Ingá
E o altar, sendo “falo” e “esfinge”, é também “signo” que, na sugestão de alguns recortes das gravuras, torna-se vulva – “fenda”/“concha”/”vértice” – e “tálamo”; é “Dédalo” a persistir no “enigma”, relutando em ser decifrado. Mas a decifração, Juca, não é a preocupação que você tem em mente. A “pedra em silêncio”, “labirinto infinito”, é o símbolo do encantamento, das transformações operadas no movimento do rio – “oráculo /e segredo” –, do vento, da chuva, das pessoas, que por ela passam.
Você percebeu, meu querido amigo, que não estou fazendo crítica literária. Deixei de lado, deliberadamente, esse palavreado acadêmico e, muitas vezes, cediço e enfatuado, para sucumbir à emoção da leitura, em que sentir é mais importante do que compreender. Optei por escrever apenas sobre o que me toca. Sem páthos, sem a emoção, escrever é perda de tempo, é querer que a apatia se torne poesia. Só me moverei para escrever, quando a mágica operada pela criação se fizer diante dos meus olhos. Criação, meu amigo, que se esconde atrás de uma palavra não menos mágica, a poíesis, cuja simples tradução como poesia é incapaz de abranger o seu complexo e belo significado. É a poíesis que, nesse encantamento, faz a pedra viva, reverberando no corpo e no espírito, no coração e no fôlego, num movimento semelhante à sístole e à diástole, que nos exaure, mas não deixa de nos haurir. No seu duplo de “espelho/ e mistério”, a “pedra-poema”, querido Juca, virou definitivamente pedra-poesia, “indecifrada/palavra” em “infinito/movimento”.
Meu amigo, explico agora o que foi para mim incompreensível, quando você me disse “estou esperando...”. Limitei-me a pensar na sua espera pelo texto prometido. Não tive o alcance de sentir que você, Juca, estava ciente de que sua missão, aqui, entre nós, estava completada e era hora de partir, hora de voltar para o mundo espiritual, deixando-nos de corpo, mas permanecendo em espírito e poesia, no seu sentido mais amplo. Permanecendo como
Pedra
ante
pedra
singular
sonata
em branco
e prata.