Os intelectuais normalmente não andam junto de Deus. Compreende-se. É a força da razão, da racionalidade, do ver-para-crer. É como se a inteligência fosse incompatível com a fé, com a crença no sobrenatural, na divindade. É a força da matéria sobre o espírito, da física sobre a metafísica, da imanência sobre a transcendência, do objetivo sobre o subjetivo, do substantivo sobre o adjetivo. Dá para se ver, só por estas poucas linhas, como a questão é ampla e complexa. E o homem vai, ao longo da história, caminhando entre essas antíteses, uns mais seguros, outros, não.
Há os que cultivam sua crença e sua descrença com convicção. Outros, balançam entre uma e outra, sem definição. Compreende-se também. No humano, cabe tudo. Ou quase. Quem pode ter certeza de alguma coisa nesse mundo de tantas incertezas? A resposta de tudo certamente são os mortos que a possuem, mas eles não retornam para nos contar a respeito. E aí? Aceitamos ou não o testemunho dos “espíritas” e de outras religiões sobre a vida eterna. Para alguns, é fácil; para outros, não.
Refleti sobre isso ao reler recentemente o poema “Deus, meu amigo”, de Hildeberto Barbosa Filho, publicado no jornal A União e em seu mais recente livro, Cemitério Vivo, Editora Ideia, João Pessoa, 2023. E ali o poeta expressa a ambivalência que é de muitos:
“Deus,
você não existe,
e existe,
e está comigo
como aquela estrela
que brilha
na minha alma”.
Estes versos dizem muito. O título do poema diz muito. Só o fato de o poema ter sido escrito – e publicado – diz muito. Para Hildeberto (e para muitos), Deus não existe – e existe. E agora?
Agora, é assim mesmo. A ambiguidade continua. Até quando? Quem sabe? Cada qual vai seguindo seu caminho, acumulando (ou não) experiências e saberes, formando (ou não) opiniões, chegando (ou não) a alguma evidência. Porque esse é o caminhar ordinário das pessoas de pensamento não fundamentalistas, das pessoas abertas às possibilidades todas que existem: a oscilação, a insegurança, a dúvida. Duvido, logo existo. Este deveria ser (talvez seja) o lema dos verdadeiros filósofos. E para os que não duvidam, os que proclamam certezas, a nossa humilde admiração – ou o nosso desprezo.
Gilberto Freyre nunca abraçou a fé cristã abertamente. Ficava lá e cá. Namorava à distância, como antigamente. Amor platônico? Talvez. Mas no leito de morte, já sem falar, mas lúcido, aceitou com um gesto explícito a proposta do velho amigo Edson Nery da Fonseca de levar-lhe um sacerdote para uma conversa final. E Nery levou-lhe o abade do mosteiro beneditino de Olinda. E eles conversaram demoradamente a sós, como convém nesses momentos. E Gilberto finalmente reconciliou-se com a fé da infância, o velho de mãos dadas ao menino, caminhando juntos em direção ao umbral da eternidade. Gilberto morreu em paz.
Semelhante proposta foi feita a Machado de Assis agonizante. O velho cético resistiu. “Seria uma hipocrisia”, teria dito, mantendo-se coerente com tudo que tinha sido até então. Não recebeu nenhum religioso e partiu de peito aberto rumo ao desconhecido, sem medo, provavelmente acreditando que ia para o grande Nada, hipótese, penso, que tem lá os seus encantos. O grande Voltaire foi nessa mesma linha. Quando, à morte, propuseram-lhe um padre, teria respondido, com a ironia de sempre: “Não é hora de fazer novos inimigos”.
Drummond, que não acreditava, escreveu inumeráveis poemas em que fala em Deus, mostrando a presença da divindade, se não no seu coração, na sua vida. Por sua maneira de ser, íntegro a toda prova, imagino que, se fosse o caso, teria seguido a mesma coerência machadiana nos instantes finais.
Volto a Hildeberto. O poeta paraibano, que nunca foi um crente explícito, dança com Deus um bolero talvez sem solução: dois pra lá, dois pra cá. Isso mostra a sua humanidade. E a sua coragem, pois não teme explicitar seus dilemas, quando tantos escondem as incertezas. E a verdadeira poesia – e a verdadeira arte – nutre-se exatamente disso: da verdade de nossas fraquezas e das nossas limitações ante a grandeza incompreensível do universo. E, além do universo, de um Deus possível, fonte de tantas perplexidades.
A caminhada de Hildeberto seguirá. Está longe, esperamos, de acabar. Seu diálogo/monólogo com Deus certamente continuará. E começou bem, penso eu, com o poeta austero chamando-O de amigo.