O apodo vem provavelmente do nome. De Octavio (com “c” mudo), virou Tavico e depois, como era natural, se tornou Vico e Vico ficou pelo resto da vida.
Intitulava-se um “Nó de Pinho”. Vou explicar o porquê. A araucária, endêmica da Mantiqueira, oferece madeira vastamente usada em movelaria e construção civil. É árvore que chega fácil aos 30 metros de altura. No alto surge uma copa de onde sai a galharia formando uma espécie da taça de cabeça para baixo. É justamente dessa parte do tronco que está a parte de pouca utilidade como madeira. De onde saem os galhos é que nasce o nó, o chamado nó de pinho. O serrote comum de um carpinteiro não consegue encarar o dito cujo, é preciso serra elétrica para enfrentar o danado.
O velho Vico sempre foi duro na queda, homem de não levar desaforo para casa. Valente, segundo seus contemporâneos, um verdadeiro nó de pinho segundo ele mesmo.
Não teve educação formal, frequentou o Grupo Escolar só até o segundo ano primário e por aí interrompeu sua escolaridade para dar início ao aprendizado do ofício que exerceria ao logo de sua vida. Meu avó foi carpinteiro e dos bons. Ainda estão de pé lá em Campos do Jordão, várias residências de madeira que ele edificou. Tinha a bossa da arquitetura e essas edificações possuíam desenhos arrojados, com sempre mais de duas águas. O design surgia para ele por mera intuição. Era um artista.
A vida não lhe permitiu acesso à erudição, mas não conseguiu atirá-lo às trevas da ignorância e da alienação. Nas poucas horas que lhe permitiam
afastar-se do martelo e da enxó, meu avô lia. Lia muito, o que lhe permitia o atrevimento de encarar temas diversos, desde a Teoria da Evolução até o desempenho do Marechal Montgomery na campanha da África, durante a Grande Guerra, quando deu uma pisa no badalado “Raposa do Deserto”, o Marechal Rommel. Sabia tudo dessa guerra e mais algumas que vieram depois.
Na prateleira de sua cozinha, tempo ainda das válvulas, estava lá o velho rádio da marca Semp que o conectava com o mundo e nas do seu quarto algumas dezenas de livros. Não se arriscava na Literatura e pouco na Aritmética como nas Ciências. Seu forte era História e Geografia. Era um homem consciente e de opiniões fortes, intransigente quando o mote era a conduta moral dos seus e de quem lhe era próximo.
Rigoroso com os filhos acabou sendo mais brando com os netos, para os quais distribuía sem parcimônia carinhos em conselhos. E desse trato com sua segunda geração foi que recebi uma gratificante lição que aqui deixo a quem possa interessar.
Estava eu naqueles dias nebulosos correndo à igreja e aos cartórios, recolhendo papelada, certidão de batismo e outras coisas para assumir aquele compromisso que atende pelo nome de casamento, quando o velho Vico me convocou para um particular. Quis inicialmente saber se eu pretendia ter filhos.
⏤ Então, em sua casa não devem faltar três coisas.
⏤ O quê, vô?
⏤ Bichos, plantas e livros. Quer ouvir a explicação? — e começou — O bicho ensina a criança a dar valor à vida. Com eles aprenderá a conviver com as perdas de entes queridos, como algo natural em nossa vida por aqui. Dará afeto e certamente o terá de volta. Criança que tem bicho não sai por aí, maltratando gente, tem uma forma diferente de ver o mundo e olha a humanidade com mais paciência e ternura.
⏤ E as plantas?
⏤ É aí que começamos a entender que é da terra que a humanidade tira seu sustento. Aprende a plantar um pé de feijão e entenderá o que se faz para produzir uma alface. Mostra a seu filho como cuidar de um jardim, de uma pequena horta, pode ser num vaso, numa jardineira. Se não tiver quintal, planta um pé de manjericão em algum lugar improvisado, coloca uma samambaia na varanda. Os vegetais não devolverão carinho, mas é com eles que podemos desenvolver o hábito singelo da contemplação. Quem doa uns minutos da vida para contemplar um ipê florido, saberá com isso faz bem a alma.
⏤ E os livros?
⏤ Meu neto, se seu não tivesse lido muito na vida, não saberia dizer o que disse até agora para você.
