Nascer numa cidade pequena e ser mulher, há mais de cinco décadas, era por si só um desafio. Existiam códigos escritos que estabelecia...

As ilusões esquecidas

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Nascer numa cidade pequena e ser mulher, há mais de cinco décadas, era por si só um desafio. Existiam códigos escritos que estabeleciam limites dignos do medievo (a legislação vigente então, por exemplo, rezava que no prazo de dez dias após o matrimônio, o marido podia pedir anulação de casamento, sob o argumento de que desconhecia o fato de sua mulher não ser virgem. Isso era considerado “erro essencial sobre a pessoa do outro cônjuge”, até 2001) e códigos informais, morais, sociais, que também definiam as fêmeas em relação à sua comunidade.

Fugir ao destino estabelecido para cada classe social também era dolo sem condenação aparente, mas presente durante o resto da existência do individuo.
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Helene Schjerfbeck, 1944
O filósofo francês Michel Foucault, ao tratar do espaço e das funções que as instituições ocupam na sociedade moderna, afirmava que, nela, uma ordem autoritária se estabelece. Resultante disso, quando uma pessoa se insere em determinada instituição deve logo se adequar às normas, valores e ditames da mesma. Voilà Foucault, eu não me adaptei...

A frase “sempre a frente do seu tempo”, por exemplo, trazia entre falsos elogios a condenação. Significava antes de tudo falta de seriedade e coerência para com os valores/tabus locais programados para mulheres em geral. O rótulo se aplicava para poetisas, atrizes, andarilhas ou meras criaturas que recusaram o prato em que comeram. E a todas que ousaram. Principalmente às que ousaram sonhar. O júri era branco e masculino mas as colegas aplaudiam as decisões. E riam. Hienas riem...

Vi muita reputação ser questionada (principalmente entre mulheres que nunca leram uma linha) em função de poemas que falassem de desejos, de sensualidade partindo de um olhar feminino. Hilda Hilst, culta, de personalidade marcante e temperamento transgressor, que ia de encontro aos costumes da época, morava em São Paulo, mas demorou a ser levada a sério pelos intelectuais masculinos de então, passeando por temas como solidão, morte, amor, loucura e erotismo. Mesmo hoje, poucas mulheres a conhecem ou admiraram. A situação na província para mulheres que não seguiam a matilha era/é milhares de vezes pior. Elas eram simplesmente esquecidas, mesmo vivas,
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H. Schjerfbeck, 1934
algumas tratadas como simplesmente mal amadas, outras de seres necessitando de uma lavagem de roupa.

Hoje, ainda minoria (mesmo que em maior número nos censos) tem-se que ir ainda a muito beija mão quando mais idosas ou levantar muita saia para fazer parte da maçonaria do mundo artístico/literário provinciano.

O termo “feminista” ainda é difícil para levar nas costas. Nossas companheiras de sexo, ávidas de participar de lutas que as integrem no mundo capitalista e assim ter um lugar entre os machos predadores e vencedores, nos insultam pela ousadia e nos dias que correm nos chamam de “feminazi”. Descontextualizado, "feminazi" pode parecer só um termo bobo. Ninguém que tenha o mínimo de cognição, interesse ou conhecimento seria capaz de comparar duas linhas tão opostas de pensamento como o nazismo e o feminismo: uma defendendo a exclusão e a outra a inclusão. Porém, nas redes sociais que ora definem a vida, basta que uma mulher "ouse" sair do espaço de fala para ela "delimitado", para que seja submetida ao termo e, em decorrência, seja desacreditada e calada. E a ideia é exatamente essa: não debater, mas silenciar. E não livro a cara dos intelectuais. Principalmente na província.

Ao discutirmos sobre a sociedade moderna, veremos que existem padrões normalizantes que, embora ocultos, ou ao menos não sejam claramente visíveis, estão consolidados, principalmente nas instituições.
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H. Schjerfbeck, 1933
Na província, o meio dito “erudito” tem consciência de seus guetos. Isolam-se em bandos na maioria do tempo e, por vezes, condescendem, e se permitem caçar com mulheres em vez de com lobos. Fim da caçada: Joga-se um osso com mais ou menos carne para poucas e ficam com o resto.

A maioria das mulheres inteligentes (para usar uma definição local: “à frente do seu tempo”) da província em que nasci foi embora. Para outros espaços livres do fardo da memória. Dos rótulos jamais esquecidos, das mentes pequenas, das muralhas, do estupro (por vezes metafórico) para “disciplinar uma mulher”, intelectualmente ou não. E, no entanto como são belas e calmas exteriormente as pequenas cidades. Mesmo as de prédios altos. Um dia na beira do mar, num bar qualquer as resume. Na polis erudita também o tempo é rápido. Um dia, um amigo atento me chamou a atenção para o fato de que dos meus tantos livros escritos, tão poucos tinham sido editados na província natal. Na hora, respondi que a província é uma reunião de pequenos egos. Nem atentei ao fato de que eu era uma mulher.

“Ajusto-me a mim, não ao mundo”, disse Anaïs Nin. Lucien de Rubempré, via Honoré de Balzac, corre atrás de suas ilusões perdidas. Eu tento me lembrar das tantas que esqueci embora diga José Américo que ninguém se perde no caminho de volta...

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  1. Excelente artigo! Você colocou com precisão “as mulheres a frente do seu tempo “ Assim eram chamadas mulheres inteligentes, escritoras, professoras universitárias, poetas. Elas desejaram ser diferentes. Conquistaram seu espaço.
    Mas os homens precisariam aprovar. E as chamavam “ Mulheres a frente do seu tempo “ cara Madalena, seu artigo é atual. Forte abraço, Regina Lyra

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