Algumas das minhas intuições se confirmam. Minha birra com cabelo não é nova. Na minha compreensão, cabelo só atrapalha. Lavar, pentear...

A realidade superando a ficção

pre historia johannes krause genetica
Algumas das minhas intuições se confirmam. Minha birra com cabelo não é nova. Na minha compreensão, cabelo só atrapalha. Lavar, pentear, cortar, tudo é muito trabalhoso e dispendioso. De tanto ver nos filmes de ficção científica os alienígenas sem cabelo, tirei uma conclusão particular de que para se evoluir é preciso perder os cabelos. Na brincadeira, dizia que a grande vantagem de ser careca é gastar menos água e sabonete, e ainda economizar com shampoo e condicionador. Agora vejo ser uma verdade que não
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se restringe à brincadeira ou à ficção alienígena nos filmes.

Estou lendo o livro A jornada de nossos genes, de Johannes Krause e Thomas Trappe (tradução de Maurício Mendes da Costa e Vanessa Rabel, Rio de Janeiro, Sextante, 2022). Trappe é um jornalista alemão especializado em saúde e acompanha, há anos, o trabalho do arqueogeneticista Krause, prestigiado e importante pesquisador alemão, diretor e fundador do Instituto Max Planck de Ciência da História Humana, em Jena na Alemanha, atualmente diretor do Departamento de Arqueogenética do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva de Leipzig.

O livro mostra que a minha intuição estava correta. Krause aponta a perda de pelo, como fator importante na evolução dos chamados primatas superiores, no caso, nós. O fato de tentar ficar em pé na savana, para fugir do predador ou para ver melhor a presa, determinou a perda gradual dos pelos e o desenvolvimento de um sistema de refrigeração eficiente – as glândulas sudoríparas. Mas não foi só isso. A perda de cabelo nos deu uma resistência, em andar e correr de modo cadenciado, maior do que a dos mamíferos peludos. Tribos existem, ainda, na África atual, que perseguem por dias um animal, como faziam seus ancestrais há milênios,
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Ernest Henry Griset, 1871
cansando-o, e o matam com mais facilidade do que travando uma luta com o animal no auge de suas forças.

Os bons efeitos colaterais de adotar a posição ereta não param com a consequente perda de pelos: o Homo erectus sobreviveu e evoluiu mais rápido que outras espécies. A resistência nos fez aumentar a nossa dieta de proteínas e gordura animal, responsável pelo aumento de nosso cérebro, que consome muita energia, visto que a atividade de um bípede “exige mais energia do que andar de quatro patas, como um macaco” (p. 58). O cérebro de um chimpanzé, por exemplo, nosso primo mais próximo, pesa 400 gramas; o de um homem pesa cerca de três vezes mais. Comer carne e gordura foi, ao que parece, um fator decisivo para a nossa evolução, permitindo uma resistência ímpar nas terríveis eras glaciais e no difícil trabalho de migrar, atravessando rios, mares, geleiras, cordilheiras.

As migrações, por sua vez, foram cruciais para a nossa sobrevivência como espécie. A saída da África dos humanos modernos, em direção ao norte, se deu, aproximadamente, há 200 mil anos. Depois seguiram para o leste e para o oeste levando consigo possibilidades de pestes, por conta dos novos agrupamentos e as novas relações estabelecidas. Levaram também, contudo, a salvação e a multiplicação da espécie humana, em uma diversidade que se encontra na sua unidade genética, cuja origem está na Eva Mitocondrial, esse ancestral único de que todos os seres humanos descendem. Descobrimos, assim, que, além de afrodescendentes, somos todos um pouco turcos, tendo em vista que os europeus modernos são descendentes dos povos agricultores da Anatólia.

A jornada de nossos genes ▪ Sextante, 2022
Sem as levas migratórias, teríamos ficado na África e, em lugar de uma diversidade civilizatória, teríamos, provavelmente, perecido ante as situações climáticas adversas. Somos todos um único povo, com suas diferenças culturais, mas partilhando o mesmo DNA. No tocante à América, a resposta que se pode dar, em relação ao que hoje os revisionistas chamam de “invasão europeia” e de “povos originários”, é que, tomando como fundamento as descobertas da arqueogenética, aconteceu, como diz Krause, um encontro entre primos distantes, no tempo e no espaço, cujos genes foram espalhados pela Europa, pela Sibéria, sendo também encontrados nas Américas. A prova genética está na descoberta do menino de Mal’ta, “uma criança que viveu há 24 mil anos na região de Baikal, ao norte da Mongólia. Seu genoma é o elo perfeito entre europeus e indígenas americanos” (p. 116-7). Se estes primos resolveram se matar ou tentar a subjugação do mais fraco pelo mais forte belicamente, não devemos creditar isto ao DNA, senão à natureza do humano que, como diz Victor Hugo, nesse aspecto, dizer humano é dizer desumano.

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E.H. Griset, 1871
O trabalho de arqueogenética desenvolvido por Johannes Krause é, pois, de uma importância extrema para sabermos quem somos, de onde viemos, por onde passamos, aonde fomos parar e que situações vivenciamos, de modo a nos encontrar nas circunstâncias em que estamos atualmente. Mas não é só a ciência que se beneficia desse novo ramo científico. Nós, leigos, também. Com ele, aprendemos como é importante ter um conhecimento, pouco que seja, sobre o DNA, sobre os genes e, mais especificamente, sobre o nosso genoma. A partir daí, mitos e ativismos tolos são desfeitos, sobretudo, nos apontando um caminho para compreender a humanidade. Se considerarmos, por exemplo, que a América foi invadida, como se os europeus fossem uma espécie diferente dos habitantes aqui encontrados, como se fossem alienígenas, teríamos que desconsiderar todas as levas migratórias da história, inclusive as atuais. O problema do ativismo é que ele é ingênuo – estou sendo deliberadamente eufêmico –,
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E.H. Griset, 1871
vendo as coisas de modo linear, sem conseguir enxergar a complexidade das relações humanas, de que não se pode descartar a sua natureza biológica.

A pele clara, por exemplo, dava-se pela ausência de carne na dieta dos povos agricultores. Já os caçadores-coletores tinham a pele mais escura. Sabe-se que, por baixo do pelo do chimpanzé, a sua pele é clara. Ao perdermos nosso pelo, tivemos que adaptar a pele para receber a incidência dos raios do sol. Os que migraram para a Ásia e para a Europa, em contrapartida, tendo a pele mais clara, tinham insuficiência de vitamina D, com a pouca incidência da luz do sol e, portanto, menos absorção de raios ultravioleta. Se alguma vez, você já tomou o famigerado óleo de fígado de bacalhau, tenha a certeza de que ele não era o vilão de nossa infância. Na realidade, ele era utilizado pelos nórdicos, entre outros atributos vitamínicos, como um modo de suprir a deficiência de vitamina D:

“8 mil anos atrás, os europeus centrais tinham a pele mais escura do que os imigrantes do sul. A resposta está na dieta das duas populações. Os caçadores-coletores absorviam vitamina D suficiente por meio de uma dieta à base de peixes e carnes. Os agricultores anatolianos tinham uma dieta quase toda vegetariana, complementada por laticínios, e não absorviam nenhuma vitamina D de peixes e carnes.”
⏤ p. 90 ⏤

Outro fator considerado por Johannes Krause é a descoberta de nossas habilidades de Homo faber, oriundas de um passado remoto. A saída da floresta para a savana não apenas proporcionou que ficássemos eretos e que mudássemos a nossa dieta, tendo como consequência o aumento do nosso cérebro. Ao perdermos a habilidade preênsil, deixamos as mãos livres para a realização de trabalhos mais refinados, como armamentos, instrumentos, cerâmicas e, obviamente, a arte. Ao lado da fabricação de utensílios, descobriu-se a fabricação de estatuetas míticas, de simbologia religiosa, como as Vênus de grande genitália, datadas de 35 a 40 mil anos, com tetas fartas e ancas abundantes, expressão da fertilidade das multíparas,
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E.H. Griset, 1871
condição essencial para a sobrevivência dos pequenos núcleos de hominíneos (terminologia de Krause).

As pinturas narrando as caçadas de grandes mamíferos são o exemplo de uma necessidade de preservar algum feito, mas também com teor didático, ensinando às gerações futuras a busca árdua pelo alimento para a manutenção da tribo. Como uma narrativa representando feitos humanos, podemos dizer que há ali um componente ficcional incipiente. A arte, pura e simples, aparece com a música, tendo como primeiro instrumento a flauta, como aquela fabricada de ossos de pássaro, datada de 35 mil anos. Johannes Krause aventa a possibilidade de que os artistas seriam uma classe diferencial, que atrairiam as fêmeas, mais do que os outros da espécie, garantido a sobrevivência. Por estas descobertas, podemos deduzir que, quando ainda éramos trôpegos na dupla articulação da linguagem, nosso cérebro já era capaz de formular pensamentos refinados.

O capítulo dedicado à língua (Capítulo 6, “Os europeus descobrem uma língua”) é dos mais importantes. Os anatolianos não só legaram seu DNA e a técnica da agricultura à Europa. Eles trouxeram também a língua, que se disseminou pelo continente, há cerca de 4.000 anos, e havia se expandido, um milênio antes, com a cultura Yamna. Língua proveniente de um protoindo-europeu, cuja idade, partindo do leste da Anatólia, remonta a 8.000 anos, o que se pode avaliar pelas pesquisas
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E.H. Griset, 1871
no DNA de grupos de falantes. Isto não seria possível sem as levas migratórias, de tal modo que Krause afirma que “a jornada das nossas línguas também é a jornada de nossos genes” (p. 154).

O mais importante, contudo, é a compreensão clara de que língua é instrumento de poder, mas não porque alguém decidiu que a língua seria esta ou aquela. As línguas são conhecidas por documentos e pelo uso. É preciso que os dois fatores andem juntos. Uma língua com documento, mas sem ser falada, tem a importância do legado que deixou para a humanidade. Uma língua apenas falada, sem documentação, está fadada à morte. É preciso, pois, que o uso (fala) se transforme em documento (escrita) e que aquela língua se torne a predominante pelo uso dos habitantes de uma região. É claro que o poder bélico e econômico diz muito da permanência de uma língua, mas não é tudo. Veja-se que os árabes ocuparam a Península Ibérica, de 711 a 1492, mas a contribuição árabe foi apenas no léxico, não na estrutura das várias línguas que ali se constituíram documentalmente, pelo menos 4 séculos depois: espanhol, português, provençal, catalão, basco, galego...

Por outro lado, Krause ratifica o princípio linguístico de que as línguas modernas já não se modificam com a rapidez que havia antes, quando eram apenas faladas, por estarem presas a sistemas linguísticos mais rígidos, como a forma escrita. O espanhol tanto quanto o português, só para citar um exemplo, são línguas estáveis, há mais ou menos 500 anos. Em outras palavras, o sistema das línguas modernas rejeita transformações abruptas e esdrúxulas,
MPI-GEA
sobretudo, quando elas vêm através de imposições de grupo e não da comunidade dos usuários.

A aventura humana, que Johannes Krause nos conta é uma história fantástica, com um componente que a torna ainda mais admirável: é real, guiada pela ciência, que responde sob o nome de arqueogenética. Depois dos magníficos livros de Richard Dawkins, Johannes Krause nos mostra que se estudássemos e conhecêssemos melhor as nossas origens e tudo por que passamos, a difusão de teorias absurdas seria muito mais difícil, muitas delas conscientes, destinadas a operar uma separação e, no seu limite, uma segregação danosa a todas as pessoas. Somos uma única espécie, oriunda de uma única mulher, a Eva mitocondrial, descoberta na África, datada de 160 mil anos. As diferenças que existem entre nós, apenas nos enriquecem revelando uma diversidade mais de ordem cultural e de aparência de corpo do que de essência humana. Devíamos nos concentrar nessas informações, que não podem ser contestadas, pois o testemunho infalível é dado pelo DNA.

A vida, ao final da leitura deste importante e genial livro – além de bem escrito, com uma abundância de mapas, que fazem a minha alegria de cartógrafo frustrado –, é de uma maravilha e de um espetáculo que supera, de longe, qualquer ficção.

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