Em termos estritamente materiais, a vida é um processo físico-químico. Sem a química do carbono, por exemplo, não existe vida, na forma como a conhecemos. Isto é ponto pacífico entre os cientistas e, principalmente, entre os evolucionistas. Ernst Haeckel, em Os enigmas do universo, é um dos precursores na constatação da importância do carbono para a criação da vida.
Apesar de ser a vida um processo físico-químico, não se pode dizer que cientistas do porte de Richard Dawkins e Ernst Haeckel – este contra o papismo romano, mas com uma profissão de fé monista; aquele ateu confesso – tenham tratado dessa visão material sem um quê de poesia. Se Dawkins define o carbono como “o andaime da vida”; Haeckel o chama de “corpo maravilhoso que determina a formação da infinita variedade dos agregados orgânicos e que, por consequência, representa a base ‘química da vida’” (Capítulo Primeiro, Como se estabelecem os Enigmas do Universo, p. 5, tradução nossa).
Quando retoma os passos da sua Teoria carbógena, já explicitada em seu livro História da criação natural, Haeckel, trinta anos depois, em Os enigmas do universo, deixa mais clara a importância desse elemento para vida (Capítulo XIV, Unidade da natureza, p. 301):
“Só as propriedades características, físico-químicas do carbono – e principalmente o seu estado de agregado semilíquido, assim como a facilidade com que se destroem as suas combinações, os seus muito complexos albuminoides – são as causas mecânicas destes fenômenos motores particulares, que distinguem os organismos dos corpos inorgânicos, conjunto de fenômenos que se designam com o nome de ‘vida’”.
Ao tratar da fecundação animal e, mais especificamente, humana, Haeckel vai se referir a uma atração entre o espermatozoide e o óvulo, de um modo não muito convencional para a ciência, que ele chama de “quimiotropismo erótico” (Capítulo IV – A nossa Embriologia –, p. 74):
“Entre os milhões de células flageladas machas, que se espremem em enxame em torno do óvulo fêmeo, uma só penetra no corpo protoplasmático. Os núcleos das duas células (núcleo do espermatozoide e núcleo do óvulo) são atraídos um para o outro por uma força misteriosa considerada com uma atividade sensorial química, análoga ao odor: os dois núcleos se aproximam, então, um do outro e se fusionam. Assim, graças a uma impressão sensível dos dois núcleos sexuais e em consequência de um quimiotropismo erótico, ele produz uma nova célula, que reúne em si as qualidades hereditárias dos dois pais; o núcleo do espermatozoide transmite os caracteres paternos, o do óvulo os caracteres maternos à célula-mãe, a cuja custa o gérmen se desenvolve; esta transmissão vale tanto para as qualidades corporais quanto para o que se chamam as qualidades da alma.”
E vai mais longe ainda, ao supor um “amor celular sexual”, reforçando a ideia do erotismo entre os protagonistas da fecundação, o espermatozoide e o óvulo (Capítulo VIII – Embriologia da alma, p. 163):
“Assim que as duas espécies de células, em consequência da cópula, vêm a se encontrar, ou quando são postas em contato
por uma fecundação artificial (por exemplo, nos peixes), elas se atraem reciprocamente e se abraçam estreitamente. A causa desta atração celular é de natureza química, é um modo de atividade sensorial do plasma, qualquer coisa de análogo ao odor ou ao gosto, a que damos o nome de Quimiotropismo erótico; também se pode muito bem (e isso tanto no sentido da química, como no sentido do amor romanesco) chamar isso uma ‘afinidade eletiva celular’ ou um 'amor celular sexual'. Numerosas células flageladas, incluídas no esperma, nadam rapidamente para o imóvel óvulo e procuram penetrar no seu corpo”
Em primeiro lugar, Haeckel sabia que a atração entre os corpos é do conhecimento científico, desde 1687, quando Isaac Newton formulou a lei da gravitação universal, segundo a qual “todo corpo no universo seria atraído para todos os outros corpos por uma força que se intensificava quanto maior fosse a massa dos corpos e quanto mais perto estivessem uns dos outros” (Stephen Hawking, Uma breve história do tempo, tradução de Cássio de Arantes Leite, Rio de Janeiro, Intrínseca, 2015, p. 15). A atração entre o óvulo e o espermatozoide, senão pelo odor ou pelo gosto, ou por ambos, é, pois, de natureza física, tanto quanto química. Por outro lado, pela sua erudição, Haeckel, além do conceito científico de tropismo – um movimento orientado a um determinado estímulo –, levando em consideração que a vida é produto da química dos elementos, reforça o sentido de Eros como força germinadora, conceito de Hesíodo, com um sentido distante daquele que entendemos hoje, com relação ao termo.
Na Teogonia, Hesíodo se refere às quatro forças primordiais que deram origem ao universo – Caos, Gaia, Tártaro e Eros. O Caos é o abismo informe, a boca aberta para o nada, sem nenhuma referência, possível. Gaia, a Terra, deusa-mãe de que tudo se origina, tanto os demais deuses, quanto os humanos, é a primeira referência que vai permitir o ordenamento, que se chamará apropriadamente Cosmos. Tártaro é o seio da Terra, prisão futura dos Titãs, lugar profundo e escuro, cuja distância se mede pela queda de uma bigorna por nove dias, e Eros é a força primordial que une os contrários para a procriação da vida. A este termo não se aplica o sentido que hoje lhe dão de concupiscência e sensualidade. Eros é força de procriação, portanto de vida. Haeckel ao falar do quimiotropismo erótico procura ressaltar essa força de atração que leva ao surgimento da vida, seja no cosmos, seja nos seres vivos, mas particularmente no ser humano:
“A causa dessa existência [do ser humano] é bem antes e unicamente o Eros dos seus dois pais, esse poderoso instinto sexual comum a todas as plantas e a todos os animais pluricelulares e que os conduz a copular.”
— Capítulo VIII, Embriologia da Alma, p. 161 —
Augusto dos Anjos, seguindo as pegadas de Haeckel, repete a expressão no Eu, em “Os Doentes”, com um sentido para além daquele que o cientista lhe deu (Parte III, estrofe 22, versos 83-84):
Sentir, adstritos ao quimiotropismo
Erótico, os micróbios assanhados
Passearem, como inúmeros soldados,
Nas cancerosidades do organismo!
O termo é de Haeckel, conforme já vimos, mas Augusto dos Anjos o emprega com outro sentido, que entra em choque com um certo ideal do cientista alemão, fundamentado na sua teoria monística. O eu-poético, em uma angustiante noite de alucinações é impactado pela exposição, crua e expressionista, da degradação humana. A materialidade em que se apega o ser humano, arrasta-o a uma condição extrema de doente não só do corpo, mas sobretudo da alma. Consciente de que a alma doente adoece o corpo, o eu-poético anseia por um recomeço do processo evolutivo – “reduzido à plastídula homogênea” –, na esperança de que a natureza humana possa se modificar, num diálogo claro com “Monólogo de uma Sombra” (Parte V, estrofes 54-5, versos 211-218):
"Anelava ficar um dia, em suma,
Menor que o anfioxus e inferior à tênia,
Reduzido à plastídula homogênea,
Sem diferenciação alguma.
Era (nem sei em síntese o que diga)
Um velhíssimo instinto atávico, era
A saudade inconsciente da monera
Que havia sido minha mãe antiga!"
O ambiente que cerca o eu-poético lhe desenha uma cidade de doentes, fazendo-o enxergar uma imagem distorcida da vida, resultante da exploração e da miséria, em que a conspurcação predomina, conduzindo à prostituição dos mais frágeis, como as mulheres e, sobretudo, as mulheres negras. Nessa situação de escuridão noturna e de escuridão da alma humana, o eu-poético percebe que o quimiotropismo erótico, longe de ser uma atração que leva à fecundação e à criação de um ser vivo, é um instrumento de severa degradação do humano; de atração fecundadora, a vida tornou-se uma sujeição de “micróbios assanhados” às “cancerosidades do organismo”. A vida, como um milagre, oriundo de uma “afinidade eletiva celular” ou de “um amor celular sexual”, na escuridão em que o eu-poético se encontra, perdeu a batalha para a degradação que o apego da matéria provoca. É o peso de uma evolução natural que não acompanhou a evolução espiritual (Parte I, estrofe 4, versos 12-14):
“E via em mim, coberto de desgraças,
O resultado de bilhões de raças
Que há muitos anos desapareceram!”
O homem material provoca a doença em si mesmo, sendo ele próprio o seu câncer; inverteu as relações e conspurcou tudo o que possa existir de mais puro, da virgindade intrínseca de Véstia à comunhão, que deveria reunir os homens em congraçamento (Parte III, estrofe 16, versos 59-62):
“Dormia embaixo, com a promíscua véstia
No embotamento crasso dos sentidos,
A comunhão dos homens reunidos
Pela camaradagem das moléstias.”
Só a manhã, com a sua luz, é que poderá retirá-lo da visão doentia em que se encontra mergulhado, e dar-lhe a esperança de renovação, de renascimento, como nos aponta a última parte do poema. Percebe-se, portanto, como os binômios recorrentes noite/dia e escuridão/luz são, em Augusto dos Anjos, as metáforas para a degradação e a espiritualização. O sol não é apenas luz, mas a purificação, que começa dentro do próprio homem (Parte VII, estrofe 73, versos 287-290; Parte VIII, estrofes 96-7, versos 379-390):
“Dentro da noite funda um braço humano
Parecia cavar ao longe um poço
Para enterrar minha ilusão de moço,
Como a boca de um poço artesiano!”
“Manhã. E eis-me a absorver a luz de fora,
Como o íncola do polo ártico, às vezes,
Absorve, após a noite de seis meses,
Os raios caloríficos da aurora.
Do meu cérebro à absconsa tábua rasa
Vinha a luz restituir o antigo crédito,
Proporcionando-me o prazer inédito,
De quem possui um sol dentro de casa”
Mais do que uma oposição excludente, noite e dia assumem uma posição dialética, de uma necessidade recíproca, sem o que a transformação não ocorrerá. Explica-se, assim, a “negra eucaristia”: é no contato com o “fácies do morfético” que a alma surpreende o lamento da “Humanidade” (Parte VII, estrofe 82, versos 323-326).
A nossa intenção não é fazer uma análise de “Os Doentes”, o que demandaria mais tempo e mais espaço, dada a complexidade do poema. Como o nosso objetivo é definir “quimiotropismo erótico”, lançamos mão de uma compreensão global do poema, de modo a contextualizar criticamente o verbete. Desse modo, podemos perceber não haver, na poesia de Augusto dos Anjos, uma estagnação do sentido dos termos científicos. Há, na realidade, uma ampliação, em que a significância, essência da criação literária, mostra-se imprescindível para a busca de uma compreensão profunda.