Não sou versado nesses assuntos e, portanto, não sei se João estava lá. Sei, porém, da história por ele contada, lá se vão uns dois milênios. Mais do que simplesmente contada, narrada a bico de pena a fim de não restar a menor dúvida acerca do que então expunha.
Com o perdão de um ou outro desvio, coisa incapaz de alterar o enredo, reconto que foi Maria quem levou ao filho a má notícia: “Não há mais vinho”. Estavam num casamento e, no melhor da festa, a bebida acabara para a insatisfação do grande número de convidados. O moço viu seis potes de pedra por perto, cada um com capacidade próxima dos 100 litros, pediu a alguém para enchê-los d’água e, sem encostar naquilo um dedinho sequer, transformou tudo no melhor vinho da praça.
No melhor, de fato, a julgar pelo que leio de um homem sério, não dado a mentiras. Pois bem, João escreveu que o encarregado da recepção a quem os potes foram levados provou aquilo e comentou com uma pessoa da casa, não sei se o pai da noiva: “Todos servem, primeiramente, o vinho bom e, quando os convidados já estão bêbados, servem o pior. Você, porém, guardou o vinho bom até agora”. Ou seja, o melhor dos vinhos acabava de chegar.
Sabem onde isso aconteceu? Em Caná, uma aldeia da Galileia, hoje em dia, uma cidade dentro de Israel com população predominantemente mulçumana, mas de enorme significado para o cristianismo, porquanto detém a Igreja das Bodas. Ainda vou lá.
Por que eu relembro o primeiro milagre de Cristo no momento em que os cristãos pranteiam sua dor e sua morte? Pois bem, porque seu lado humano me fascina desde que me entendi por gente. Comove-me e envolve-me, é claro, a história deste homem que tomou para si os pecados do mundo e, por conta disso, foi degradado e açoitado até o instante da dor mais sentida, até o suplício indescritível da crucificação.
Mas a humanidade de Cristo, tanto quanto sua santidade, fala bem alto à minha alma. Arrepia-me o relato da sua agonia, momentos antes da prisão. Ciente do próprio destino, isolado dos amigos mais próximos, todos adormecidos e alheios a seu drama pessoal, ele quase desistia: “Pai, retira de mim esse cálice”. Por um brevíssimo momento, o santo se fazia humano.
Repito: o Cristo menos divino, se for prudente o emprego da expressão, tem toda a admiração deste pecador nascido há mais de 70 anos na beirada de Pernambuco para as primeiras lições do catecismo quase aos pés de Nossa Senhora del Pilar, assim mesmo, espanholada.
Ali, em vão, tentaram fazer com que eu aprendesse a dar a outra face, como assim ele havia recomendado. Ele e a professora Da Paz, a catequista a quem não dei muito ouvido.
Perdão, querida. É que, já então, eu me fazia mais próximo daquele Cristo impaciente com os escravagistas, com os endinheirados à custa da miséria alheia, gente para a qual as portas do Céu adquiriam a espessura do fundo das agulhas.
Encantava-me o Cristo que tomava a ralé por companhia, os pescadores de cais de porto, as Marias Madalenas, sem de todo desprezar o velho Zaqueu. Sabem não? Falo do camarada que tinha em fortuna o que não tinha em estatura. Do sujeito decente que encoberto pela multidão subiu numa árvore de Jericó, sob risco de queda séria, para ver aquele que por ali passava. E Jesus: “Oi, Zaqueu. Vou na tua casa. Prepara o almoço”.
Não sei quando, ou se irão inventar a tal máquina do tempo. Fosse-me possível, pegaria uma bicha dessas a fim de pousar, exatamente, na porta da Igreja onde cambistas, gente sem princípios, velhacos de toda espécie vendiam milagres e bugigangas e eram dali tangidos sem dó nem piedade. Como eu gostaria de ver aquelas cipoadas. Também, a mim, meu Santo, esse tipo de gente causa asco.
Havia escolas na Palestina um século antes de Cristo vir ao mundo, ao que li, via Internet, num texto com a assinatura de Altair Germano. A produção literária do Novo Testamento, diz o autor, resultou daqueles ensinos. Adveio de uma política educacional que produziria os escritos da época concretos, materiais, coisa dos homens e não dos anjos. O mesmo João, suficientemente letrado, recebeu a missão do seu Mestre quando ambos se encontraram em Patmos: “Escreva num livro o que você vê e mande-o às sete Igrejas: “Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tatiara, Sardes, Filadélfia e Laudiceia”. E assim foi feito.
Aquele sistema embrionário de educação pública teria um criador: o rabino Simon bem Shetach, irmão da rainha Salomé e presidente do Sinédrio. Outros seguiram seu exemplo e, tempo depois, as Sinagogas abrigariam escolas primárias. Quando na mesma sala os alunos passavam de 25, nomeava-se um professor especial. A criançada ali ingressava com cinco anos de idade (para os estudos sagrados), iniciava aos dez os estudos da Tradição, conhecia e praticava aos treze toda a lei e, aos quinze, iniciava o nível mais avançado. A especialização dava-se em Jerusalém numa das escolas “beth ha-midrash” onde militavam os Doutores da Lei, os mesmos que receberam lições daquele pirralho de doze anos. É o que me conta a mesma fonte.
Agora, vamos ao que disse Lucas: “O menino crescia e se fortalecia, enchendo-se de sabedoria. E a graça de Deus estava sobre ele”. Também: “Jesus crescia em sabedoria, estatura e graça”. Entendamos que era um belo moço.
É disso que mais gosto: de escarafunchar os tidos e havidos na busca dos modos e hábitos humanos cultivados por gente santa. Gosto de saber que língua eles e elas falavam, se iam à escola, do que brincavam quando meninos e meninas, o que comiam e, sobretudo, quando perdiam a paciência. Jesus perdeu a dele perto dos 30 anos. Sozinho, sem ajuda de ninguém, pôs para correr os mercadores da fé. Acho que, hoje em dia, para dar conta do mesmo recado, ele precisaria mais de milagre do que de porrete. Os vendilhões do templo e da pátria aumentaram muito.