Ela trabalhava na pequena biblioteca da cidadezinha, e dividia essa atividade com uma rotina entediante e repetitiva. Tinha nome de santa, Maria da Luz, que só existia internamente. Acordava logo cedo e após preparar o café do companheiro, que ficava dormindo, estendido na grande cama, seguia pontualmente para cumprir seus dois turnos da lida. Quando encontrava pessoas no caminho, sorria e sempre solícita distribuía gentilezas. No entanto, ao fechar a porta da sua sala secular, com janelões sempre fechados, avaliava sua qualidade de vida, do tempo que fugia, dos sonhos que tivera, da saudade da poesia que fora tão presente na sua vida.
“Chega tem hora que ri de dentro pra fora
Não fica, nem vai embora, é o estado de poesia”
(Chico César)
(Chico César)
Iniciava as tarefas com a limpeza das estantes, em seguida retirava os livros para “espantar” qualquer poeira, como se polisse joias de ouro. Organizava por títulos, tamanhos, e assim conservava bem aquela restrita memória. Se lhe sobrava alguma folga, escolhia aleatoriamente um exemplar e dedicava-se à leitura, acrescentando às suas frustrações um maior conhecimento. O que mais lhe doía era nunca ter recebido uma carta de amor e lembrava do Diário de Frida Kahlo e suas incontáveis cartas... hoje nada secretas.
Ao voltar à sua casa, encontrava o outro na varanda gradeada, tomando uma caninha com limão galego, comentando sobre o dia de trabalho na Prefeitura. Ao vê-la, pontuou que o plantão dela começaria em breve. Ah, quase esquecia que à noite, três vezes por semana também trabalhava como “auxiliar de enfermagem”, com uma única função: fazer bolinhas de algodão, nada mais do que isso. Nunca fizera um curativo sequer, nunca assistira a qualquer procedimento, fazia bolinhas de algodão, por horas a fio, para completar o orçamento doméstico. Herdara muitos bens, mas cabia ao marido a administração de todos. Girava as mãos pacientemente, para não pensar, para automatizar o gesto, para esquecer palavras e o eco desagradável que seguia essa escuta.
“Um dia me disseram
Que as nuvens não eram de algodão
Sem querer elas me deram
As chaves que abrem essa prisão”
(Engenheiros do Havaí)
(Engenheiros do Havaí)
Os filhos da bibliotecária casaram jovens demais, dezesseis e dezessete anos, e o vazio da maternidade não foi bem resolvido. Cuidava dos vizinhos que adoeciam, de parentes vindos dos sítios distantes.
Na aparência usava sempre vestidos compostos de poliéster (não precisava passar), mangas e golas, comprimento abaixo dos joelhos. Preferia estampas miúdas e listras. O cabelo sempre preso impedia que se tivesse uma real noção do seu aspecto. Óculos de grau também escondiam olhos claros, com círculos concêntricos das lentes pesadas. Apesar do casamento tão desigual, ela respeitava e admirava o marido.
- Ah, ele entende de tudo, controla meu dinheiro, resolve os problemas do gado, e faz todas as compras da casa. Até o meu celular, ele me ajuda quando não acerto algo!
O homem enaltecido, era desprovido de atrativos, mas tinha um papo interminável, sabia de todas as fofocas da cidade, e como ocupava um cargo gracioso que lhe dava algum destaque, era assediado pelas funcionárias.
Um dia ela recebeu de uma amiga de infância um presente de aniversário diferente, uma blusa “sem ombros”, como a moda indicava. Guardou o pacote como um troféu, escondido na “gaveta das lembranças”. Afinal, nunca usaria uma peça tão provocante, e aos quarenta anos??? Agradeceu tanto o mimo que a amiga que a presenteou espalhou a notícia, e logo providenciou uma minissaia de couro. A animação era tanta que uma vizinha quis saber sobre os presentes.
- Ah, que boa oportunidade de retribuir um pouco toda atenção que Da Luz me dá. E, sem demora correu à sapataria e comprou um par de botas de verniz vermelho. O projeto uniu as três que se encontraram no Clube Feminino para escolher uma data festiva para a surpresa. O grupo discorria sobre as datas futuras, quando a dona do salão mais chique veio cumprimentá-las e ofereceu seus préstimos. Antes de se despedirem, a primeira amiga levantou uma dúvida:
- De nada adiantará tudo isso se não conseguirmos um oftalmologista para livrá-la dos óculos “fundo de garrafa”, e quase imediatamente lembrou do dr. Manoel que tinha plantão no mesmo dia de Maria da Luz! E assim conquistaram mais um cumplice para o plano elaborado.
“Revoar por asas da imaginação
Para muito além da imensidão
Vida, vida, que mais te quero ainda
Linda vida, que mais te faça linda”
(Ricardo Feghali/Nando Cordel)
(Ricardo Feghali/Nando Cordel)
Na história passada de Maria da Luz havia o relato de um episódio na juventude de “desequilíbrio mental”, que uma vez tratado, nunca mais acontecera. E até a família esquecera. Ao sair para o trabalho numa segunda feira, o marido entregou-lhe uma caixa de livros e informou:
- Vou me aposentar, leve esses livros técnicos para a biblioteca, pois podem servir para algum estudante.
- Ah como ele era bom, mesmo ríspido e nada carinhoso, pensava nos outros! Ela cobria as faltas...
“De repente, a gente vê que perdeu ou está
Perdendo alguma coisa
Morna e ingênua que vai ficando no caminho”(Frejat/Cazuza)
Com a nova missão e selecionar e organizar os livros doados, Maria da Luz o fez caprichosamente até com certo carinho. De repente, um ruído provocado por uma bomba junina na rua a fez derrubar um dos volumes, e dele com suas folhas gastas, caíram três papeis no chão. Ela preocupada, curvou-se para pegar e descobriu uma nota de compra de tinta, uma lista de supermercado e uma carta perfumada, bem dobrada... uma carta?
Seu coração agitou-se, pois até que enfim realizaria seu sonho. Havia sombras cor de rosa de lápis hidrocor e isso dava o toque feminino de quem quis agradar uma mulher. Como tinha sido injusta com o marido!!! Por trás da casca dura existia uma sensibilidade encoberta! Ele escrevera, mas não tivera coragem de entregar. O ritmo cardíaco perdera o controle, andava aos galopes, o inesperado a deixou feliz e esperançosa, lentamente avivou-se a curiosidade e tocou levemente o papel. A imaginação é pródiga quando retorna a si mesma! Quando o relógio de ponto encerrou o expediente, ansiosamente abriu a carta. Empalideceu e apoiou-se na parede, era uma carta de uma mulher que se dirigia a um homem, queixando-se das grosserias e palavrões por ele proferidos e lembrava o quanto se amavam, e que continuaria a lutar pela relação de casal. Frases grifadas com lápis rosa enfatizavam a intensidade da dor, mais um sentimento magoado e existente!
Por que abrira semelhante documento? E agora, tomara conhecimento desse segredo... Não conseguia mais pensar, a cabeça confusa, mil pensamentos simultâneos, desorientada, queria pedir ajuda, mas não sabia como. Saiu trôpega como se houvesse bebido pela primeira vez, e foi encontrada vagando nas ruas por conhecidos.
“Deixe-me ir, preciso andar
Vou por aí a procurar
Rir para não chorar
Deixe-me ir”(Cartola)
Em casa, não falava, o olhar perdido no nada, deixou-se ficar dias na cama, sem aceitar alimentação, sem interagir com ninguém, a família justificava:
- Ela vinha trabalhando demais, fazendo horas extras com as bolinhas de algodão. O clínico geral foi visitá-la e prescreveu um antidepressivo forte. Era tudo que ela (não) precisava. Entrou no estado de mania, com excitação e euforia, cantava o dia inteiro, e mergulhou plenamente em surto psicótico. Abriu sua gaveta de lembranças, tirou a blusa sexy, a saia e as botas. Foi ao salão e pintou os cabelos de vermelho para combinar com o conjunto. Como perdera peso, tornou-se uma mulher esfuziante, sedutora e sem inibições... e conheceu rapazes interessados nessa nova mulher. Fez a cirurgia dos olhos, deu os óculos velhos a um mendigo. Foi a shows, viajou para festas, conheceu praias (com biquíni de lacinhos), e estourou o cartão de crédito do marido. Este, desesperado a seguia onde as pessoas informassem seu paradeiro. E continuava dizendo aos amigos:
- Esse negócio de fazer bolinhas mexeu com o juízo dela, coitada da minha esposa, não sabe mais quem ela é!
Ao chegar ao extremo dos atos, alguém a levou a um especialista recém-chegado à cidade. Medicada corretamente para seu transtorno, Maria da Luz recuperou-se em poucos meses. Coube ao marido, ao percebê-la bem, a pergunta fatal:
- O que aconteceu com você?
- Ela sorriu e devolveu a pergunta. É um artista mesmo! Achei a carta da sua amante, e vi que você também é indelicado com a moça!
- Ele surpreso, negou veementemente e pediu: Mostre-me tal carta, que vou desmascarar essa mentira.
- Maria da Luz correu à gaveta das lembranças e exibiu a folha responsável por tanto sofrimento.
- Ele abriu e de cenho franzido retrucou.
- Criatura, essa carta foi você quem escreveu há quase quinze anos passados, quando teve aquela crise, está lembrada? O lápis era da nossa filhinha que desenhava na mesa ao lado.
O passado voltou, mas não o perdão, porque agora ela tinha consciência de que ele era o mesmo durante todo o tempo, e que “a doença” a libertara de uma vida reprimida e infeliz. Dobrou a carta, fez uma malinha de viagem com todas as lembranças da gaveta e pediu firmemente outro cartão com limite superior. Entregou o contato do advogado grifado de rosa e desapareceu no uber do colega do hospital, para nunca mais voltar.
A poeira encheu os olhos de quem ficou imóvel até voltar à sua mediocridade.
“De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama”
(Vinícius de Morais)