"No último dia de sua vida, quando ela estava com 257 anos, a poetisa cega, fazedora de milagres e profetisa Pampa Kampana completou a sua imensa narrativa sobre Bisnaga e a enterrou em um pote de barro selado com cera no coração do recinto real, como uma mensagem para o futuro".
Assim começa "Victory City", o novo livro de Salman Rushdie, lançado há duas semanas. O primeiro romance após o atentado que quase o matou em 2022.
É um dos mais belos livros que li nos últimos anos. O romance se passa no século XIV, em um império real, numa região que hoje se situa no sul da Índia.
É um dos mais belos livros que li nos últimos anos. O romance se passa no século XIV, em um império real, numa região que hoje se situa no sul da Índia.
Rushdie opta pelo realismo fantástico para fazer a recriação mitológica do reino perdido de Vijayanagar, e assim aborda o funcionamento das sociedades humanas, com suas dinâmicas e disfunções. Percorre os conflitos e o humor sempre volátil das multidões, faz uma leitura complexa de questões de gênero, religião entrelaçada com política, sexualidade, arte, história, governo, psicologia das massas, relações familiares e guerras. Mas, sobretudo, é um grande livro sobre o poder das palavras. Tudo vem embalado em um texto que flui tão naturalmente, como um regatozinho cantante.
Percebi - pela primeira vez em Rushdie - uma centelha referente à fatwa que o condenou à morte. Está delicadamente presente na cena em que o rei e a rainha conversam sobre as críticas às belas esculturas eróticas no templo, vindas de religiosos fanáticos, gente feia ou de coração partido, solitários e a multidão de invejosos e ciumentos..
Para quem conhece um pouco da literatura e da cultura indianas, o livro cresce ainda mais, pois há as sutilezas, os jogos de palavras, as referências. Pampa Kampana, a protagonista, é inspirada em Gangadevi, uma princesa poetisa do século 14, que vivia (adivinhe) em Vijayanagar. E as múltiplas referências aos grandes clássicos indianos acrescentam uma textura ímpar ao livro. Estão todos lá: Mahabharata, Ramayana, os Upanishads, os Kama-Sutra. Um livro que somente Salman Rushdie poderia ter escrito.
Que privilégio o nosso por ter um escritor como Rushdie entre nós. Mal sabia ele que, assim como sua personagem cega, ele também seria convertido em um contador de histórias semicego a dizer, melancolicamente: "Como são ingratas as pessoas, por encontrar complicações em uma simples oferta de beleza, arte e alegria".
* O livro Vitory City está disponível em inglês na Amazon.
(o lançamento em português está previsto para outubro de 2023)
(o lançamento em português está previsto para outubro de 2023)