Para meu amigo, professor Zezão, que fui reencontrar depois de 43 anos+ Era o final dos anos 70 e o país começava a sentir os prim...

Um curió e a goiabada cascão

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Para meu amigo, professor Zezão, que fui reencontrar depois de 43 anos+
Era o final dos anos 70 e o país começava a sentir os primeiros bafejos de liberdade, já quando os coturnos haviam desistido de pisotear nossas margaridas. Alguns anos depois a farda apeou do poder. Os exilados políticos começavam a retornar. Toda aquela gente que “partiu num rabo de foguete” estava de volta. Num canto ou noutro ainda choravam Marias e Clarices, mas de qualquer forma, já se respiravam os primeiros ares de nossa primavera democrática.

Eu, à época, era professor de cursinho, quando essa atividade profissional concedia status de quase um “pop star”. Auditórios lotados, microfone em uma mão, giz na outra e aulas ensaiadas em cada gesto, cada
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palavra, cada detalhe. Salários hoje impensáveis. Cada dia da semana em uma cidade. Sábados e domingos com a família, mulher, duas meninas pequenas e um cão. Nesses tempos morava em Ribeirão Preto, cidade quente, da poeira vermelha com cheiro de cana queimada, cidade do chope gelado e parada obrigatória das andorinhas andejas anunciadoras do estio.

O trabalho estabelecia vínculos entre as famílias de alguns colegas professores e a amizade com gente da terra surgia com naturalidade. Aos sábados, pausa merecida. Então, os churrascos, as feijoadas, as quiabadas, as galinhadas e outras desculpas gastronômicas para as famílias, os amigos e os chegados, não só celebrarem a arte do encontro e a magia daqueles dias, mas principalmente para ouvirmos Sandrinha cantar, sempre acompanhada ao violão do irmão Marquinhos.

Naquelas tardes em que a cantoria avançava noite à dentro fui apresentado às músicas caipiras e quantas vezes me surpreendi ao ver minhas filhas, tão pequeninas, cantarolando Chico Mineiro, Boi Soberano, Menino da Porteira, Três Boiadeiros, Saudade da Minha Terra e outras tantas, tão cultuadas naqueles rincões do país. Duas canções eram emblemáticas e sempre se faziam presentes no início daquelas tardes: “O Bêbado e a Equilibrista” e “Rancho da Goiabada”. Estas e outras tantas canções que ouvi depois não tiveram o mesmo fascínio, o mesmo encanto que a voz de Sandrinha e os acordes de Marquinhos emprestavam àquelas composições. Precisavam ver só Sandrinha cantando…


“Os boias frias quando tomam umas biritas Espantando a tristeza Sonham com bife-a-cavalo, batata-frita E a sobremesa É goiabada Cascão com muito queijo Depois café, cigarro e um beijo De uma mulher chamada Leonor ou Dagmar”.

Alternávamos as casas para as sabatinas musicais. Ainda me lembro quando numa delas apareceu o Dr. Sócrates, que acabara de sair do Botafogo local e fora para o Corinthians. Transformara-se em celebridade, mas não mudara o jeitão caipira de ser, nem se afastara dos amigos. Ali arriscou o desempenho em um tamborim e o fez com alguma desenvoltura, mas depois tentou uma cantoria...Era muito melhor jogando futebol. Muito! Foi nesse momento que o doutor diagnosticou: “Essa danada canta como um curió!”.

Amar Rádio de pilha, o fogão-jacaré A marmita, o domingo no bar Onde tantos iguais se reúnem contando mentiras
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Pra poder suportar”.

Aqueles encontros vinham como bálsamos para enfrentar a lida da semana seguinte, aquele mundaréu de aulas, toda aquela pressão. Estreitei, nesses saraus, profundos laços de amizade. Aqui as referencio como um preito de gratidão e saudade.

Ai, são pais-de-santo, paus-de-arara, são passistas São flagelados, são pingentes, balconistas Palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados Dançando, dormindo de olhos abertos A sombra da alegoria De um faraó embalsamado.

No começo dos anos 80 deixei Ribeirão. Mantivemos laços com aquele rol de amigos inesquecíveis. Fizemos com algumas viagens de férias, passamos juntos Carnaval em Ubatuba, nos escondemos com Sandrinha na praia da Fortaleza, litoral norte de São Paulo. Marquinhos chegou a nos visitar em Campos do Jordão. Os contatos foram rareando até não ter mais notícias deles, de ninguém mais.

A voz daquele curió e aqueles acordes de violão estão gravados, impregnados em minha memória com a força de uma tatuagem. Essas lembranças, ora surgem pungentes, com muita força, ora como nuvens esparsas, como a triste alegoria de um faraó embalsamado. Mas como dói.

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