Cultivo um ponto de vista estranho e mesmo confuso ante o significado humano do progresso. Talvez seja o dicionário Aurélio o que mais concorra para a babel que o assunto assanha em minha cabeça. Diz lá como primeiros significados: “Progresso - Movimento ou marcha para a frente; desenvolvimento; aumento; adiantamento em sentido favorável”. Sem acrescentar o harmonioso. Deve ter sido este o sentido perseguido na divisa positivista da bandeira.
Vai por aí até que a televisão local abre a janela para o Dia Internacional da Mulher, esse 8 de março com sua justa e bela homenagem à luta da mulher do campo, simbolizada em Elizabeth Teixeira, nos seus 98 anos, com uma parceira urbana a catar lixo para manter o filho na escola e ajudar no sustento da mãe dele sob a latada de um barraco que não se compara com a casa da camponesa de 1962, quando conheci Elizabeth, decorridos 61 anos de progresso. Era uma casa rústica dominada pela força de trabalho do grande líder camponês João Pedro Teixeira.
Ah! – me dirão – o catador de lixo destes tempos de estradas reduplicadas, faixa de asfalto comum a todas as ruas, água encanada, nenhuma casa sem luz nos fundões paraibanos, meio século de programas continuados de habitação popular urbana, informática em todos os serviços, 1 milhão e 300 mil veículos para 4 milhões de habitantes, numa média universal de 3 habitantes por carro, mais celulares do que ouvidos, ou seja, o catador de lixo destes nossos tempos não é mais o “bicho” do poeta Manuel Bandeira:
"Vi ontem um bicho
Na imundície do pátio
Catando lixo entre os detritos (...)
O bicho não era um cão
Não era um gato
Não era um rato
O bicho, meu Deus, era um homem!”
Mudou, sem dúvida. Houve progresso, dirão os entusiastas. Desde 2011 que o catador, mesmo arrastando uma carroça de tração humana (as de tração animal já foram proibidas oficialmente) obteve o reconhecimento profissional da Câmara do país e, por consequência, do Ministério do Trabalho. Associou-se em cooperativas e soube mobilizar-se por seus direitos. Mas as condições de trabalho não são muito diferentes das que motivaram o poema de Bandeira.
E chega a ser chocante, aos meus olhos, quando o catador de lixo da rua é uma mulher, fonte de todos os amores, e que careça de uma lei especial de proteção além da que lhe consagra o Capítulo – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos de todas as constituições.
Claro, o modo como a vi na pauta de homenagens da TV Cabo Branco, franzina e forte a rolar o seu rochedo, um trambolho de carroça, o filho colado a ela a caminho da escola, o modo como a vi em sua dignidade, me pareceu de uma grandeza superior a tudo, ao regime, a seus dirigentes, embora a condição a que é forçada a lutar como mãe e mulher negue a olhos vistos todas as definições de progresso social e humano.
Miúda, incomodando o trânsito das ruas que excretam o melhor lixo, explorada pelo atravessador, como me cresceu em seu olhar forte, superior ao meio, protegido quase que somente pelo relevo voluntarioso de suas sobrancelhas. Que pena, num instante que desviei da tela perdi seu nome. Melhor assim, seu nome é mulher.