(Conversa com Hélder Moura)
Meu caro Hélder Moura, eu gostaria, em primeiro lugar, de agradecer a sua gentileza de ter incluído, como posfácio, na segunda edição de seu livro O princípio da diversidade e outros anarquismos: textos pandemônicos, o meu artigo, “A difícil arte de autogovernar-se”, originalmente publicado no Ambiente de Leitura Carlos Romero. A sua gentileza, contudo, foi além, meu amigo, convidando-me para estar presente ao debate, por ocasião do lançamento dessa nova edição.
Seu livro, caro amigo e confrade, além de inteligente e provocativo, concede a todos os que o leem a rara oportunidade de discutir e debater o momento atual por que passamos. Começo afirmando que não há como autoconhecer-se sem conhecimento. Esta é a premissa maior. Para compreendermos a unidade, não podemos perder de vista a diversidade. Uma não existe sem a outra. Por outro lado, se a diversidade exige anarquismos, no conceito primeiro do termo, de uma sociedade que, tendo evoluído, não tem necessidade de um governo que diga como devemos proceder, também não podemos nos entregar a anarquismos sem evolução, o que daria razão ao sentido popular do termo anarquia, expressando uma sociedade desgovernada, o que convenhamos é diferente de uma sociedade que se autogoverna.
A minha segunda premissa é a de que informação não é conhecimento. O que mais temos no mundo hoje, ao alcance de grande parcela da população, é informação. Informação, no entanto, não é conhecimento. Informação precisa ser transformada em conhecimento. O problema é que o conhecimento que muitos desejam, num tempo em que a internet e as redes sociais exigem velocidade, é aquele adquirido em drágeas, conhecimento que dê a falsa impressão de profundidade a quem o expõe, quando, na maioria dos casos, esse conhecimento, por raso e superficial, não resiste a uma análise mais detida. O pior de tudo é que quando nos aprofundamos e escancaramos a falta de conhecimento, somos atacados e chamados de todos os “istas” que alguém possa imaginar.
A superficialidade do momento em que vivemos exige uma fluidez, da qual a ciência é a primeira vítima, apesar de todos as postagens e louvores à ciência, como se ciência precisasse de que fôssemos a favor ou contra ela. Se for realmente ciência, ela vai se impor e o tempo é quem mostrará esta verdade. Veja-se, por exemplo, que o comportamento social, hoje, é mais importante, para os superficiais e ativistas, do que o que afirma a ciência. O DNA é inato e não mente. Talvez seja a única coisa no nosso mundo a expressar uma verdade irrefutável. Mas o comportamento social, que é adquirido e que hoje é um, amanhã é outro, foi colocado acima dessa verdade científica, porque o ativismo desenfreado é mais importante do que qualquer coisa. Tem razão Victor Hugo em O homem que ri, ao dizer que “a ignorância é uma realidade de que nos nutrimos; a ciência é uma realidade de que somos jejunos” (Parte II, Livro VI, Capítulo II, p. 669).
Uma das consequências desse apego à superficialidade, meu caro amigo, é a afirmação de coisas sem sentido. Divirto-me bastante quando ouço alguém dizer que “precisamos pensar fora da caixa”. Algum iluminado inventou essa expressão e a maioria, sem refletir, passou a repeti-la, como se fosse uma verdade incontestável e uma descoberta tão importante para a civilização, quanto o fogo. Ou uma invenção mais necessária do que o vaso sanitário. Mais uma vez, Victor Hugo, no mesmo romance, nos ensina que “quem não possui seu pensamento não possui sua ação” (II, I, IX, p. 510), ficando à mercê do pensamento canhestro dos outros.
O que significa “pensar fora da caixa”? Nada. Absolutamente nada. Somos seres classificadores, uma espécie que por ser sapiens sapiens, derivou para sapiens sapiens taxonomicus. Ou seja, não conseguimos nos situar se não classificarmos. Precisamos de caixas, muitas caixas, para poder fazer essas classificações. E todas essas caixas se encontram dentro de uma enorme caixa que as abriga. Não há como pensar fora da caixa. Sempre estaremos dentro de uma caixa, pela necessidade que temos de classificar para poder entender. E o conhecimento sólido, o avanço científico, o progresso social só ocorrem quando compreendemos isto. Sem nomear, o que significa classificar em um primeiro instante, nada existe. Sem classificação, só há o caos ou o pandemônio que, bem definido por John Milton, no seu Paraíso perdido, é a reunião de todos os demônios, como se não bastassem os demônios singulares que nos atormentam diariamente... O poeta Hesíodo tinha consciência da necessidade da classificação e a expressou, há 2800 anos, num poema chamado Teogonia, a origem dos deuses, cuja finalidade é chegar a uma cosmogonia, uma origem do universo composto a partir de uma ordenação. Daí a necessidade de se falar da origem dos deuses, de estabelecer como referência primeira, Gaia, a Terra-Mãe, de onde tudo se origina, para que se faça a diferenciação com relação ao Caos, a boca aberta, o abismo profundo para o nada, que nada distingue. A partir da referência primeira, tudo surge, mas para que a ordem se estabeleça é necessário que haja uma luta entre contrários e se firme um poder ordenador, cuja base será a Justiça. Em suma, meu caríssimo confrade, não existe fora da caixa.
Meu caro Hélder Moura, seu livro nos dá a oportunidade valiosa de discutir estas questões e, por isto, ele incomodará o coro dos contentes, que nada conhecem e vivem a papaguear o que lhe mandam ou servindo de boneco de ventríloquo. A verdade é que sem o conhecimento que se adquire lenta, progressiva e cumulativamente, não há como se autoconhecer. O lema que se encontrava na fachada do templo de Apolo, em Delfos, “Conhece-te a ti mesmo”, exige, antes, o esforço de conhecermos o mundo que nos circunda, de modo que possamos fazer uma análise de nós próprios, em relação a este mundo, situando-nos, para podermos nos enfrentar. Autoconhecimento é uma prática de meu enfrentamento a mim mesmo, na busca de encontrar dentro de mim o sentido da Justiça e, uma vez encontrada, praticá-la constantemente.
Buscar autoconhecer-se é ter a consciência de que a sociedade não existe sem a tríade Educação-Responsabilidade-Justiça. A educação é o processo de aquisição de conhecimento, que nos faz sair das trevas e da aparência para o confronto com a luz, levando-nos a conhecer a responsabilidade por ter adquirido o conhecimento. É, portanto, a responsabilidade um avanço diante do outro e de mim próprio, no sentido que eu não só não me limitarei, mas sobretudo deixarei de lado, de uma vez por todas, a procura de culpados. A culpa, além de instrumento de tortura, é estagnante; a responsabilidade, por sua vez, age junto com a necessidade, conduzindo-nos a assumir a consequência de nossos atos, movendo-nos sempre para frente. Podemos deduzir, portanto, que educação mais responsabilidade nos proporciona a prática constante da Justiça. Sem estes três elementos, imprescindíveis e incontornáveis, não haverá autoconhecimento, não saberemos quem somos, nem como lidar com a injustiça. Isto é Platão.
Chegamos, meu caro amigo, à conclusão das premissas. A busca do autoconhecimento, enfim, é o que se pode entender por Política, com P maiúsculo, pois destina-se a uma procura por sermos melhores, não melhores do que os outros, como acontece na cabeça dos que confundem política com partidarismo, mas melhores para os outros. Sendo melhores para os outros, seremos melhores para nós mesmos. Reside aí uma sentença de Platão, pouco entendida pelas pessoas, que a deturpam dizendo que a falta de participação política nos faz ser governados pelos piores. Na realidade, na República, trecho 347c, Platão, pela boca de Sócrates diz que “a punição mais grave é a de sermos governados por alguém muito pior do que nós, quando nos recusamos a nos governar a nós mesmos”. O autogoverna retira de cima de nós o peso de maus governantes e nos conduz sempre para a realização da Justiça, porque já a encontramos dentro de nós.
O melhor de tudo isto, meu caro confrade Hélder Moura, é que procurar realizar cotidianamente a Justiça, independe de política e de religião. Só depende de nós mesmos. Assim como não precisamos das leis ou da política partidária, para sermos bons e praticarmos o bem, também não precisamos de religião. Mas precisarmos ser bons e praticar o bem, se quisermos ter uma religião, uma política do bem comum e leis que em lugar de simplesmente serem usadas para julgar, sejam justas.
Um grande abraço, meu caro amigo.