A Mirabeau Dias
O cenário é a senhoria de Tanis, na Normandia, na Mancha, noroeste da França. O ano é 1793. A França se encontra sob o regime político da Convenção Nacional (1792-1795), braço da Revolução Francesa que, se por um lado consolida a revolução, por outro lado instaura um regime de terror, com medidas extremas, próximo a uma ditadura. O mês é junho. Já haviam se passado quatro meses, desde que Luís XVI fora guilhotinado, mas a guerra entre realistas e republicanos está longe de acabar.
Há dois personagens em cena, Lantenac e um mendigo. Lantenac é marquês, visconde de Fontenay, príncipe bretão, lugar-tenente geral dos exércitos do rei, desembarcado, furtivamente, na costa de Granville, com a intenção de liderar uma revolta monarquista contra a república francesa há quase um ano instaurada (21/09/1792). Seu objetivo é arrebanhar os camponeses e apoiar as forças realistas remanescentes. O marquês se chama Lantenac, como já vimos; o nome do mendigo é Tellmarch, mas ele é chamado por todos de le Caimand, nome comum na região para designar... mendigo. O mendigo, portanto, reforçado pelo apelido que lhe dão, é um mendigo. Mais não é preciso dizer. Os dois travam um diálogo.
O que se pode esperar do diálogo entre um marquês contrarrevolucionário e um mendigo, destituído de tudo, inclusive de esperança; entre um homem que vive nos salões dos palácios e castelos da nobreza, senhor de terras e de outros homens, e um mendigo, que se encontra em sua senhoria, onde cabe-lhe, como morada, uma toca, escavada sob as raízes de frondoso carvalho e coberta pelos seus galhos?
Se a condição social os separa, existe algo que os iguala, ainda assim para os separar. Ambos têm quarenta anos. Cronologia e vivência são coisas diferentes, e o nome adicional que impuseram ao mendigo é que nos prova a distância entre um e outro: “O Velho”. Desde quando? Há quarenta anos. Ele jamais foi jovem (“Je n’ai jamais été jeune”, p. 845), ao contrário do marquês que o foi sempre. Com 40 anos, Lantenac parece, aos olhos do mendigo, ter pernas de vinte, para conseguir ultrapassar as dunas e fazer uma longa caminhada, desviando-se das tropas dos bleus, os azuis republicanos. Já ele próprio, Tellmarch, quase já não anda e se cansa com facilidade. Diante da admiração do marquês, o mendigo explica por que ele é velho e o marquês é novo (Quatrevingt-treize, Oeuvres complètes, Roman III, Paris, Robert Lafont, 2002, Parte I, En mer, Livro IV, Capítulo IV, “Le Caimand”, p. 845, em tradução nossa):
“O senhor tem pernas de vinte anos, escala a grande duna; eu já começo a não mais andar; ao fim de um quarto de légua, estou cansado. Nós somos, entretanto, da mesma idade; os ricos, no entanto, têm sobre nós uma vantagem, é que os ricos comem todos os dias. Comer conserva.”
O mendigo oferece abrigo ao marquês, diante do perigo iminente para o nobre. É uma forma de agradecer pela esmola da manhã, que evitou sua morte à noite. Deixemos que o diálogo entre estes dois homens da mesma idade, mas tão desiguais, fale por si (I, IV, Capítulo IV, p. 843-844):
“O marquês considerava este homem:
⏤ De que lado você está, então? Perguntou o marquês; você é republicano? Você é realista?
⏤ Eu sou um pobre.
⏤ Nem realista, nem republicano?
⏤ Eu não acredito.
⏤ Você é a favor ou contra o rei?
⏤ Eu não tenho tempo para isso.
⏤ O que você acha do que se passa?
⏤ Eu não tenho de que viver.
⏤ Entretanto, você vem em meu socorro.
⏤ Eu vi que o senhor estava fora da lei. O que é isto, a lei? Pode-se, então, estar fora? Eu não compreendo. Quanto a mim, eu estou dentro da lei? Eu estou fora da lei? Eu não sei nada disso. Morrer de fome é estar dentro da lei?
⏤ Desde quando você morre de fome?
⏤ Desde a minha vida toda.
⏤ E você me salva?
⏤ Sim.
⏤ Por quê?
⏤ Porquê eu disse: Eis um mais pobre do que eu. Eu tenho o direito de respirar, ele não tem.
⏤ É verdade. E você me salva?
⏤ Sem dúvida. Eis-nos irmãos, meu Senhor. Eu peço pão; o Senhor pede a vida. Nós somos dois mendigos.
⏤ Mas você sabe que a minha cabeça está posta a prêmio?
⏤ Sim.
⏤ Como você sabe?
⏤ Eu li o cartaz.
⏤ Você sabe ler?
⏤ Sim. E escrever também. Por que eu seria um bruto?
⏤ Então, visto que você sabe ler, e visto que você leu o cartaz, você sabe que um homem que me entregasse ganharia sessenta mil francos?
⏤ Sei.
⏤ Não em papéis.
⏤ Sim, eu sei, em ouro.
⏤ Você sabe que sessenta mil francos é uma fortuna?
⏤ Sim.
⏤ E que qualquer um que me entregasse faria sua fortuna?
⏤ Sim, e depois?
⏤ Sua fortuna!
⏤ É justamente o que eu pensei. Ao ver o Senhor, eu me disse: Quando eu penso que alguém que entregasse este homem ganharia sessenta mil francos e faria sua fortuna! Apressemo-nos a escondê-lo.”
⏤ De que lado você está, então? Perguntou o marquês; você é republicano? Você é realista?
⏤ Eu sou um pobre.
⏤ Nem realista, nem republicano?
⏤ Eu não acredito.
⏤ Você é a favor ou contra o rei?
⏤ Eu não tenho tempo para isso.
⏤ O que você acha do que se passa?
⏤ Eu não tenho de que viver.
⏤ Entretanto, você vem em meu socorro.
⏤ Eu vi que o senhor estava fora da lei. O que é isto, a lei? Pode-se, então, estar fora? Eu não compreendo. Quanto a mim, eu estou dentro da lei? Eu estou fora da lei? Eu não sei nada disso. Morrer de fome é estar dentro da lei?
⏤ Desde quando você morre de fome?
⏤ Desde a minha vida toda.
⏤ E você me salva?
⏤ Sim.
⏤ Por quê?
⏤ Porquê eu disse: Eis um mais pobre do que eu. Eu tenho o direito de respirar, ele não tem.
⏤ É verdade. E você me salva?
⏤ Sem dúvida. Eis-nos irmãos, meu Senhor. Eu peço pão; o Senhor pede a vida. Nós somos dois mendigos.
⏤ Mas você sabe que a minha cabeça está posta a prêmio?
⏤ Sim.
⏤ Como você sabe?
⏤ Eu li o cartaz.
⏤ Você sabe ler?
⏤ Sim. E escrever também. Por que eu seria um bruto?
⏤ Então, visto que você sabe ler, e visto que você leu o cartaz, você sabe que um homem que me entregasse ganharia sessenta mil francos?
⏤ Sei.
⏤ Não em papéis.
⏤ Sim, eu sei, em ouro.
⏤ Você sabe que sessenta mil francos é uma fortuna?
⏤ Sim.
⏤ E que qualquer um que me entregasse faria sua fortuna?
⏤ Sim, e depois?
⏤ Sua fortuna!
⏤ É justamente o que eu pensei. Ao ver o Senhor, eu me disse: Quando eu penso que alguém que entregasse este homem ganharia sessenta mil francos e faria sua fortuna! Apressemo-nos a escondê-lo.”
Qualquer coisa que seja dita não vai superar o diálogo travado entre estes dois personagens e a verdade cruel, revelada na fala do mendigo, nos momentos iniciais do último romance de Victor Hugo, Noventa e três (Quatrevingt-treize. Esclarecemos ter adotado a grafia que o escritor insistia em utilizar. Como diria Bento Santiago, não estou aqui para me atrever a emendar poetas ou romancistas...), iniciado ainda no exílio, em Guernesey, mas só terminado e publicado em 1874, após a sua volta para a França.
Correremos o risco, no entanto, de fazer alguns comentários adicionais, levando em consideração a conversa, informal e casual, que tive com Mirabeau Dias, por ocasião do lançamento do livro de Helder Moura, na Livraria do Luiz, de que surgiu uma salutar provocação. Mirabeau perguntou-me o porquê de eu escrever tanto sobre Victor Hugo, quando muitos não o leem e há mesmo quem o ache “brega” (Em tempo: esta não é a opinião de Mirabeau). A minha explicação foi a de que Hugo era um dos maiores escritores da literatura mundial, autor de um dos maiores romances de todos os tempos — na minha concepção, o maior —, Os Miseráveis, abordando a injustiça causadora da miséria. Poderia ter dito também que muitos que criticam Victor Hugo não o leram e se o leram não o fizeram com a atenção e o respeito devidos ao escritor. Este é um dos motivos que me levaram de volta ao autor de Notre-Dame de Paris. Não para defendê-lo, pois Victor Hugo não precisa de defensores. Todos nós passaremos, ele permanecerá. Retorno aos seus escritos para mostrar a beleza e a consciência da sua construção literária.
Quem dá a esmola e só enxerga a mão é incapaz de ver um rosto através dela (“celui qui donne ne regarde pas, celui qui reçoit examine et observe”, p. 846). Também não se digna de ouvir o nome do dono da mão. Um rosto incomoda a visão, um nome incomoda a memória. Aliar um nome a um rosto reflete um compromisso maior do que apenas dar uma moeda a uma mão. Ao enxergar a mão, o que dá a esmola vê apenas a metonímia da miséria, mas não a enxerga completamente. Enxergar a miséria por completo exige a sua extinção, o que a esmola não é capaz de fazer. A extinção da miséria só se dá com o envolvimento de um nome a um rosto, o que faz alguém perceber o ser humano além de sua condição social. As palavras do mendigo não reverberam no espírito de Lantenac. O marquês vê apenas a possibilidade de o mendigo fazer fortuna denunciando-o. A reverberação o obrigaria a renunciar aos privilégios, que geram abusos e, por sua vez, geram a miséria. O mendigo, por seu lado, sabe que a fortuna de 60 mil francos, na sua condição e na circunstância da guerra civil em andamento, em nada mudaria a sua vida. Sequer teria onde escondê-la ou como gastá-la em algo proveitoso e ela acabaria nas mãos de algum poderoso. Razões para o confisco não faltariam. Em suma, os Lantenac preservam os Tellmarch, sem os quais eles não existem. Só há palácios, porque há taperas. E o palácio, público ou privado, para a sua permanência, necessita de que a esmola seja dada e a mão, sem rosto e sem nome, se retraia e agradeça.
Como podemos ver, em um curto capítulo de quatro páginas e meia, Victor Hugo nos dá uma lição profunda de sociologia e de política, sem que o leitor possa sentir um mínimo de mágoa, ressentimento ou ira, na fala do mendigo. Haverá um arrependimento posterior, não pela perda da fortuna, por não entregar o marquês; não por ser pobre e, aparentemente, não ter consciência da exploração ou por comungar com as ideias revolucionárias, mas pelas atrocidades de Lantenac (“Uma boa ação pode, portanto, ser uma má ação. Quem salva o lobo mata os cordeiros. Quem cura a asa do abutre é responsável pela sua garra”, Parte III, Livro II, Capítulo VI, “Sein guéri, coeur saignant”, p. 947). Salvar-lhe a vida foi um gesto de gratidão àquele, cuja esmola salvou-o, por um dia, de morrer de fome. E, insistimos, não se trata de uma falta de consciência política de Tellmarch, mas de ele ter consciência de sua situação de mendigo, que não se resolverá tomando partido por ideias extremistas, em meio a dois fogos.
A carnificina que Lantenac vai deixando à sua passagem, tem como contraponto o jacobinismo parisiense dos revolucionários, encabeçados por Marat e Robespierre, e as duras medidas contra a guerra da Vendeia, tomadas pela Convenção Nacional, conforme vemos, na segunda e na terceira parte do livro, respectivamente (“O terror replicava ao terror”, Terceira Parte, Livro I, Capítulo VI, “L’âme de la terre passe dans l’homme”, p. 922). O fato é que Tellmarch, como tantos outros, está no meio de uma guerra civil, cujas maiores vítimas serão exatamente a população civil mais pobre; guerra de duas frentes para a França: uma coalisão contra ela, no exterior; uma traição, em seus territórios (“À l’extérieur la coalition, à l’intérieur la trahison”, Segunda Parte, À Paris, Livro II, Capítulo II, “Magna testantur voce per umbras”, p. 875), situação muito bem definida por Victor Hugo, como sendo trágico-épica — “Nada de mais trágico, a Europa atacando a França e a França atacando Paris. Drama que tem a estatura de uma epopeia” (Segunda Parte, Livro I, Capítulo II, “Cimourdain”, p. 865).
O que há de se ressaltar, sobretudo, é a ausência total de panfletarismo da parte do autor. A resignação da parte do mendigo e a sua gratidão pela esmola é o que vemos constantemente, quando o único objetivo dos poderosos é a manutenção da miséria e a utilização imoral dos miseráveis a seu favor. Eis o motivo por que estarei sempre retornando a este grande escritor.