A Ladeira do Alto do Céu liga a cidade baixa ao Bairro das Graças, localizado no planalto de seiscentos e vinte metros de altura. Nomes sabiamente escolhidos e adequados para a ladeira e o bairro. Durante a quaresma, o jovem e criativo pároco da cidade, para aproximar mais os moradores das solenidades da Semana Santa, resolveu “subir a montanha” em busca dos seus fiéis, nas suas casas. E, a Via Crucis com suas quatorze estações em folhetos coloridos foi colada nas fachadas das residências. Passo a passo, de suspiro em suspiro, joelhos no chão, pés descalços, na rua íngreme e sinuosa.
Para se chegar ao céu, há de se cumprir, literalmente, a Via Crucis, e, no final, merecedor, alcançar a Terra das Graças. À parte dos conceitos religiosos, o que existe lá "no alto”? Quase um paraíso, porque existem pessoas, e onde elas estão levam consigo um Purgatório.
“Para sentir dessa maneira é preciso ter sofrido muito, é preciso ser um desses corações que a infelicidade abre e amolece, ao contrário daqueles que ela fecha e endurece”
(Baudelaire)..
O clima com a altitude, também é mais frio. Após um campo de eucaliptos, as nuvens continuam a correr, fazem piruetas, dançam forró, e, quando exaustas, descem até o chão. O nevoeiro que se sucede, às vezes impede a visão das casas que se avizinham. Um fenômeno das terras do sul do país com clima europeu. A temperatura beneficia os jardins de beijos coloridos, rosas, hortênsias, gérberas, antúrios, orquídeas, jasmins, madressilvas, flor de cera, bugaris. As manhãs são acordadas por passarinhos que voam de árvore em árvore, rouxinóis, tizius, raros galos de campina, anus brancos e pretos, bem-te-vis, canários da terra, bicos de laca, rolinhas, uma mistura alegre de sons e movimentos.
“Vou sendo incorporado pelas formas
Pelo cheiro, pelo som, pelas cores,
Vou deixando pedaços de mim no cisco”
(Manoel de Barros).
Com a chegada do sol, aos poucos vão se dispersando, após um lauto café da manhã composto das noturnas mariposas.
À tarde, o sabiá, todo vaidoso e exibido, inicia seu concerto solo, até que a tarde escape com sua luz. Logo em seguida, é a vez do exótico e frequente pássaro noturno: o bacurau. De voos baixos, e pulos na terra, dissimula sua presença nas folhas secas dos lotes ainda disponíveis. Gosta do silêncio, e seu canto é um lamento triste, registrado na música de Luiz Gonzaga em sua homenagem: “Amanhã eu vou, amanhã eu vou...”
A noite é dos grilos, besouros, e dos cururus que desfilam pelas ruas, levando alguns automóveis a desviarem para um lado e para outro, evitando atropelar a turma caminhante. As corujas, muito reservadas, voam para a cumeeira mais alta das casas, e de lá observam atentamente tudo que se passa abaixo do seu olhar.
Quase um paraíso? Mas, não! Seria se o espirito humanitário fosse pré-requisito para o acesso. Existem algumas pessoas que detestam os gatos abandonados de rua, magros, esfomeados, que “imploram um miolo de pão que possa cair de suas mesas fartas” (Lucas 16:21). São intolerantes e desumanos, ao ponto de alguém juntar filhotes recém-nascidos num saco de lixo, e jogá-lo na mata, sem chances de sobrevivência e de, sequer, abrirem os olhos... Lembrando que estamos no período da Quaresma, e a Campanha da Fraternidade nos alerta: “Dai comida a quem tem fome”.
“A compaixão pelos animais está intrinsecamente ligada à bondade de caráter, quem é cruel com os animais, não pode ser um bom homem”
(A. Schopenhauer).
Quando um novo proprietário olha orgulhoso seu bem adquirido e vê um filhote de sagui passar rapidamente no seu muro divisório com a mata, lança mão impulsivamente de uma mangueira e dirige o jato forte de água em direção ao indefeso animal. A risada que se segue fala dolorosamente a quem assiste.
“Há apenas os que sentem prazer em fazer o bem
E os que sentem prazer em fazer o mal.
Tudo é volúpia”
(M. Quintana).
Somos todos “esfomeados” de amor, do bem, da caridade. As mesmas criaturas que são capazes de atos como esse vão às Missas e, no Ofertório levantam-se para deixar sua doação. Claro que nada que realmente contribua para a pintura da Igreja, que solta em lascas as camadas de tinta do teto.
A noite cai e, de uma chaise longue esquecida ao lado da piscina, vê-se a lua com sua bolandeira, cúmplice da calmaria, brincando de esconde-esconde com as nuvens. Um grande pinheiro faz sombra e tenta caprichar na sua verticalidade. Todos se recolhem, porque o frio se antecipou ao inverno. Aqui, onde há pouco choveu flores de Massaranduba em determinado quintal, leves asinhas roxas que pontilharam os cabelos da cuidadora do pequeno pomar, a relva com lilás nunca foi tão bela. Também foram colhidas das folhas dos pés de cravo, canela, açafrão, amora, cajarana, limão, araçá roxo e até do vigoroso manjericão! O convívio com o lado negro dos homens será sempre um desfio, uma superação indignada.
“Nós somos os homens ocos
Os homens empalhados
Uns nos outros amparados
O elmo cheio de nada”
(T. S. Eliot).
A normalidade é o concreto. Na terra das Amorosas que florescem em todo o campo, há de se persistir em ficar e plantar a paz, feita de silencio e esperança.
As plantas que teimosamente fazem o mesmo são objetos de comentários:
— Elas têm espinhos, temos que cortá-las! Imagine se não os tivessem? A defesa mínima garante a floração pela serra e os cachos brancos - ainda assim, perfumados. A natureza tenta na sua luta; os animais “sem dono” escapam das armadilhas, e os sem-terra se instalam precariamente. Os homens com seus pecados amargam o desejo de se santificarem e assegurarem que, além da Terra das Graças, existe uma eternidade exuberante.
“Ainda que fujas da cidade para o campo ou da rua para tua casa, a tua consciência vai sempre contigo...
“Da tua casa podes fugir para teu coração, porém, para onde fugirás de ti mesmo?”
(Santo Agostinho).