Como acontece desde 1952, a cada dez anos o British Film Institute (BFI) e a revista inglesa Sight & Sound divulgam a lista dos melhores filmes do mundo. E a de 2022 acabou de sair.
São 100 filmes, escolhidos pela comunidade cinéfila do planeta, críticos, estudiosos, historiadores, cineastas e outros profissionais da área cinematográfica. A lista tem pertinência qualitativa e, portanto, o filme citado em primeiro lugar – o mais votado - seria o melhor de todos, supostamente o melhor do mundo.
Essa condição de filme mais perfeito já feito foi dada a “Cidadão Kane” (Orson Welles, 1941) durante meio século (de 1962 a 2002), até que, em 2012, o merecimento passou para o hitchcockiano “Um corpo que cai” (1958).
Agora a nova lista faz nova mudança: retira “Um corpo que cai” desse posto privilegiado e, no seu lugar, põe um filme pouco conhecido da maioria dos espectadores, e mesmo dos cinéfilos: “Jeanne Dielman” (Chantal Ackerman, 1975).
Eu mesmo não conhecia o filme de Chantal Ackerman e, só depois da lista divulgada, pude acessá-lo. Dirigido por uma mulher e sobre mulher, “Jeanne Dielman” vem de uma cinematografia escassa, a belga, com coprodução francesa.
Com duração de três horas e vinte e dois minutos (ufa!), o filme tem a extensão de um épico e, contudo, não tem nada de épico: narra detalhadamente o cotidiano da dona de casa Jeanne Dielman (papel da bela Delphine Seyrig).
A rigor, ao invés de narração, a palavra adequada seria “descrição”: invariavelmente a da vida rotineira de uma mulher viúva entre as quatro paredes de seu apartamento. Há um filho adolescente que faz as refeições com ela, mas o tempo de tela é todo dado a essa dona de casa. Algumas poucas vezes, Jeanne dá uma saidinha para ir ao açougue, mercadinho, ou correios, mas a maior parte do tempo está em casa, fazendo mecanicamente aquilo tudo que uma dona de casa faz: cozinhar, lavar, arrumar, etc... As tomadas são demoradas e os enquadramentos fixos – geralmente planos médios - sem movimento de câmera, e também sem música. O espectador desacostumado deve estranhar que se conceda tempo interminável a tarefas domésticas do tipo: descascar batatas, preparar a carne, coar o café, limpar a mesa, etc... Tudo muito minuciosamente, como se estivéssemos assistindo a um documentário.
Bem, na verdade, há algo inusitado na vida doméstica de Jeanne, mas mesmo esse inusitado parece ser praticado com o mesmo sentido de rotina mecânica: é que toda tarde, na ausência do filho, ela recebe um homem, cada dia um diferente, que conduz ao seu quarto, e depois da relação – que não vemos – embolsa o pagamento em cédulas, que deposita num jarro, na mesa da sala. São senhores respeitáveis que procuram o seu serviço sexual com a maior discrição possível. Se compararmos, por exemplo, com “A bela da tarde”, onde as coisas acontecem fora de casa, no bordel, Jeanne seria, digamos, uma ´bela de casa´.
Para ser correto, há uma reviravolta no final, que quebra a rotina descrita, mas só conto no último parágrafo, pois vai conter spoiler.
Penso que essa consagração do filme de Chantal Ackerman no topo da lista dos melhores do British Film Institute não deveria ser sentida como surpreendente, pois, como se sabe, as mulheres vêm avançando em todas as áreas profissionais, e no caso do cinema, com impressionante rapidez. No mundo inteiro, cada vez mais mulheres dirigem filmes, roteirizam, produzem ou fazem crítica.
Não duvido que a luta pela igualdade feminina em todo o mundo tenha tido seus efeitos, tanto na composição da lista dos 1.639 atuais votantes do British Film Institute, como nas suas escolhas. Tudo bem, “Jeanne Dielman” é um filme sui generis, talvez esquisito demais para os hábitos espectatoriais vigentes, e, compreensivelmente, nunca poderia ter tido carreira comercial. Depois de eleito o melhor filme do mundo, deverá talvez ser avaliado por um público mais amplo, com mais atenção e mais entrega.
Enfim, como disse acima (e agora vem o spoiler!), a rotina da dupla vida da protagonista Jeanne Dielman só é quebrada nos últimos minutos do filme, e o é pela presença de um certo freguês. Desta vez, entramos no quarto com o casal, e testemunhamos a cópula, a câmera com foco no rosto de Jeanne, esta primeiramente indiferente, como estaria uma prostituta, mas depois inquieta, agitada, perturbada, visivelmente tomada por um orgasmo inesperado. Consumado o indesejado orgasmo, ela calmamente se levanta, procura uma tesoura e golpeia mortalmente o freguês no pescoço. O filme termina com Jeanne, suja de sangue, sentada numa cadeira da sala do seu apartamento, fitando o vazio. Fim.