O leitor lembra da imponente águia no topo da cúpula do antigo prédio do jornal A União, na Praça João Pessoa? Os mais jovens provavelmente nada sabem a respeito. Mas eu e meus contemporâneos nos lembramos. Era bela e imensa, provavelmente de bronze, de asas abertas, reinando, de sua altura, sobre toda aquela área, na esquina da praça com a rua Duque de Caxias, harmonicamente dialogando com os demais prédios históricos do entorno. Era para ser eterna, como se eternizam, no mundo civilizado, monumentos semelhantes. O prédio do jornal também era para se eternizar, junto com o Palácio da Redenção, o Palácio da Justiça e a antiga Faculdade de Direito, todos compondo, ao redor da praça, um conjunto arquitetônico único em nossa urbe de mais de quatro séculos. Era – mas não foram. Assim como também não foi a belíssima igreja que existia colada ao Palácio da Redenção, derrubada, sem maior razão, no final dos anos 1920, deixando no lugar apenas um vazio denunciador do desapreço dos governantes pelo patrimônio cultural.
O antigo prédio do jornal A União também não deveria ter sido derrubado para dar lugar à sede da Assembleia Legislativa. Para isso, poderiam ter sido desapropriados os prédios e casas do lado da Praça João Pessoa que fica exatamente em frente ao Palácio da Redenção, vizinhos da agência do Banco do Brasil. Ali havia espaço suficiente para os deputados estaduais e não se sacrificaria desnecessariamente uma das mais belas edificações históricas do centro da Capital. Aliás, os senhores deputados deveriam ter sido os primeiros a protestar contra o crime arquitetônico e histórico a ser cometido contra A União, mas não foi isso que se viu. Pelo contrário. Que me lembre, os parlamentares ficaram muito satisfeitos com a perspectiva de uma nova sede e nem pararam para refletir sobre o atentado cultural de que seriam cúmplices e beneficiários. Um completo descaso por parte de autoridades públicas, até hoje incompreensível – e injustificável.
Demolição do prédio do jornal A União, J. Pessoa (PB)
Cúpula da fachada (Desenho de Sóter) ALPB
Mas voltemos à águia. Derrubaram o prédio, retiraram a águia e, que eu saiba, não se sabe para onde ela foi e onde está guardada, como patrimônio público que é. Pelo visto, simplesmente sumiu. Assim como sumiram móveis e adereços que decoravam o Palácio da Redenção, hoje uma pálida e empobrecida imagem do que já foi interiormente. As más línguas, muitas vezes as únicas que falam a verdade, dizem que esposas de ex-governadores foram levando para casa esses objetos palacianos, privatizando sem nenhuma cerimônia o que de fato pertencia – e pertence - ao povo paraibano. Terá sido assim? Não sei, mas é bem possível. No Brasil, vem de longe essa escandalosa mistura entre público e privado, sob todas as formas imagináveis. O rico mobiliário de época do Palácio do Bispo também foi desbaratado. O que atualmente se vê lá é somente um resto sobrevivente e desolador. Mas aí trata-se de uma instituição que não é estatal. Só podemos lamentar – e nada mais – a equivocada opção preferencial pela pobreza, que sacrifica desnecessariamente um acervo valioso que interessa à coletividade paraibana como um todo, aí naturalmente incluídos os carentes de todo tipo. Coisas da Paraíba, coisas do Brasil.
Cúpula da fachada (Desenho de Sóter) ALPB
Há poucos dias, participei de um evento promovido pela seção local da União Brasileira dos Escritores sobre o nosso patrimônio histórico e cultural. Falaram dois estudiosos preocupados com a questão: Augusto Moraes e Mirabeau Dias. Este último, a certa altura, quando expôs uma foto do antigo prédio de A União, com sua maravilhosa águia triunfante, indagou por onde anda a mesma. Se não me engano, foi Augusto que levantou a hipótese de que ela esteja hoje na Alemanha, fazendo o quê ninguém sabe. Ou melhor dizendo, alguém deve saber o destino dessa riqueza paraibana, mas, certamente por razões inconfessáveis, mantém-se calado, anonimamente protegido pelo silêncio que tem lá os seus motivos.
No hall da reitoria da UFPB existia um busto de José Américo, ali colocado pelo ex-reitor Jackson Carvalho em justa homenagem ao fundador. Também foi inexplicavelmente retirado e guardado. Onde andará?
São perguntas, estas e tantas outras, que ficam no ar, sem resposta. Ninguém sabe, ninguém viu. E assim o nosso patrimônio histórico, arquitetônico e cultural vai se esvaindo pelo ralo da irresponsabilidade, da ignorância, da indiferença e do crime, privando-se as gerações presentes e futuras do que lhe pertence por direito.
A águia de A União talvez não esteja na Alemanha. Imagine o trabalho que daria levá-la para a terra de Thomas Mann. Compensaria tanto labor e tanto custo? É possível que não. Se é que ela ainda existe fisicamente, se é que ainda não foi derretida a preço de banana, é possível que esteja por aqui mesmo, em nossa aldeia, em algum lugar, mais perto do que possamos imaginar, confirmando a tese popular de que o melhor esconderijo é sempre ao lado da delegacia.
Mistério talvez sem solução. E a águia liberta das fotografias que restaram voa majestosa no céu de nossa imaginação.