— O que me diz quanto a ser a literatura um gênero da ficção, e não o contrário?
– Não sei. Quero que me esclareça antes sobre o que você chama de ficção. Da literatura sabemos todos que a ideia geral e mais difundida sobre ela abrange todo e qualquer registro de linguagem escrita da qual escorra um relato de motriz mais geral no entretenimento. Embora longe de ser o único, já que a literatura situou-se num vasto espectro de abordagens que pode ir das manipulações de massa aos ensinamentos históricos, do universo infantil fantasioso aos registros documentais de viagens, batalhas, conquistas, etc. Sem falar na grande quantidade de romances que, nos dois séculos anteriores ao nosso, arrebanharam leitores atraídos pela exposição da variada gama dos sentimentos humanos expostos de forma novelesca.
— Bom. Talvez o melhor seja fazermos a pergunta nos moldes do ovo e da galinha: quem nasceu primeiro, a ficção ou a literatura?, afirmando desde já que dessa forma a resposta será inequívoca: a ficção, claro! Literatura, enquanto forma escrita, demorou bastante para estar ao alcance das pessoas, como você deve saber, irmãozinho.
– Bem, trilhando esse raciocínio, não resta dúvida. Antes mesmo que a escrita descesse dos palácios para as ruas, já eram voz corrente as ficções criadoras do universo, com seus deuses, mistos de magos e artistas. Ademais, podemos afirmar com bastante convicção que a Ficção humana é inerente ao medo, e que, portanto, começa de forma oral. Pode-se mesmo dizer, de forma onomatopeica, que é quando a linguagem sagrada, ao que tudo indica, e pela própria formação das línguas mais primitivas, repercute em seus primórdios os cânticos e rugidos naturais da mãe natura em suas variadas vozes de trovão, procela, aluvião, terremoto ou explosão vulcânica.
Tentemos agora imaginar o que não terá sido a abertura da palavra escrita para uso do povo, naquela antiquíssima Suméria, quando os sábios da corte tiveram de descer de seu palácio para ensinar de porta em porta o significado daqueles garranchos riscados num tijolo – a chamada escrita cuneiforme –, talvez sem saber que estavam assim, e ali, matando o futuro de sua até então privilegiada profissão de escriba. Que tivessem tido ou não essa premonição, o certo é que se viram obrigados a se despojar de seus segredos diante da pressa dinástica em aumentar a produção de alimentos para seus exércitos em vias de expansão, quando então se fez necessário, pela primeira vez na história humana, a execução de um trabalho de longo e médio prazo, impossível de ser desempenhado pela multidão iletrada, que não houvera ainda tartarizado na mente o sentido de trabalhar duro no presente com o pensamento voltado para colher os frutos desse trabalho num amanhã talvez distante.
O objetivo principal daquele rebuliço todo era produzir alimentos através da criação de campos cultiváveis no gigantesco estuário criado pelo encontro dos rios Tigre e Eufrates. A escrita difundia-se assim, pela primeira vez e para registro das diversas atividades humanas e não apenas para secretos registros cartoriais e dinásticos daquela que foi a primeira Côrte imperial, anterior mesmo aos Medos e à monarquia Aquemênida, fundada por Ciro. Desde sua origem palaciana, no entanto, a escrita já tinha subscrito uma primeira produção fictícia, dribladora da realidade e anterior a sua própria invenção: a falácia divinizadora daquelas primeiras dinastias reconhecidas por historiadores ocidentais. Mas o primeiro mito de que a humanidade tem notícia nasceria ali, pouco depois, quando os reis sumérios se entregaram àquela missão de criar o primeiro vasto campo de agricultura irrigada do mundo: os mitos de Gilgamesh e de Enkidu.
É importante e sintomático mostrar que na origem desses primitivos eventos encontra-se a nascente histórica dos primeiros elementos da ficção que demorariam ainda vários séculos para ter seu registro. O primeiro deles, extraído diretamente da atividade popular de irrigação dos campos, vem a se tornar o primeiro mito nascido no âmbito de atividades plebeias, e está ligado, como não podia deixar de ser, a uma profissão surgida daquelas primeiras formas de organização do trabalho coletivo, que eram a vigilância e proteção da comunidade trabalhadora contra as feras que rondavam os campos recém irrigados. Enkidu surge aí, vigilante e caçador, com seu poderoso arco & flecha.
Na escala dos deuses sumérios, Gilgamesh representa um estágio de concepção religiosa já bem distanciada da cosmogonia original, onde Enkidu, uma das 4 potestades (íncubas aos 4 elementos), responde pela água (lembrar o processo da irrigação). Não vai ser por outra razão que o mito de Gilgamesh convive com o de Enkidu, numa pioneira fórmula divinatória que ainda hoje nos chega por ter sua equivalência na fala transcrita pelo livro do Genesis, entre Moisés e Jehová. Ou seja, uma forma de conexão direta, personalizada, entre homens e Deuses, gerando a partir daí um espaço mental capaz de aceitar a deificação de faraós, de gerar semideuses gregos e, posteriormente, a vasta e diversificada gama dos santos católicos – num extremo o humaníssimo Francisco de Assis, no outro um guerreiro genocida como Jorge da Capadócia, um ex guarda pretoriano de Diocleciano que seria enviado para combater o islam, que, num único final de tarde, executou milhares de prisioneiros, e para o qual o catolicismo papal criaria depois histórias mirabolantes como a do Dragão, sendo por isso, e ainda hoje, celebrado pela massa ignorante.
O velho testamento em muitos de seus episódios não deixa de ser um compendio de histórias bem mais antigas do que as do povo judeu, muitas delas recolhidas durante os períodos de cativeiro por este vividos, tanto em Babilônia quanto no Egito. O exemplo mais significativo é a narrativa do Dilúvio, presente na Epopeia de Gilgamesh, escrita 1.800 antes da Bíblia judaica.