Apresentamos aqui a síntese de uma pesquisa que venho desenvolvendo a partir de duas questões: Quem era Marília de Dirceu e até que ponto um eventual triângulo amoroso teria fomentado a Inconfidência Mineira? Partimos de dois pressupostos: Havia mais de uma Marília, sendo uma delas amante do poeta Tomás Antônio Gonzaga e, simultaneamente, do Governador da Capitania de Minas. O curioso é que muito provavelmente ela tenha sido o estopim das Cartas Chilenas, cuja divulgação estimulou efetivamente o efervescente movimento separatista já existente em Vila Rica. Pergunta-se até que ponto uma simples vingança amorosa, cujo objetivo era denegrir satiricamente o rival e, ao mesmo tempo, escancarar os desmandos de seu governo,
poderia ter funcionado como a mola propulsora de um movimento tão importante. Pergunta-se também até que ponto uma mulher praticamente inexistente nos livros de História teria desencadeado a Conjuração Mineira, mesmo que involuntariamente.
Ao ler as liras de Gonzaga, o leitor se surpreende ao perceber que Marília, a musa do poeta, ora tem cabelos negros, ora louros. Esse pormenor foi percebido pela primeira vez por Joaquim Norberto, que o atribuiu à necessidade de rimas e consonâncias. Depois dele, Alberto Faria reiterou a observação, mas discordou do motivo. O poeta tinha suficiente competência literária para não ter que mudar o perfil de sua musa.
Outro detalhe interessante: o amor nutrido pela musa ora é puro e virginal, ora é lascivo. Foi Afonso Pena Júnior que colocou um ponto final na questão, comprovando ter havido duas Marílias. Uma era a noiva angelical do poeta, jovem, meiga e inocente; a outra, a amante, era loira, mulher feita, viúva e “nocente”.
A obra Marília de Dirceu foi popularizada por meio das liras, que celebram os amores de Marília e de Dirceu, imortalizados desde então. Marília, oficialmente considerada como Maria Doroteia Joaquina de Seixas Brandão, foi noiva do poeta. O casamento não chegou a ser realizado, devido ao degredo do noivo inconfidente para Moçambique, onde viveu até a morte.
Na Lira II, ele traça o perfil de sua noiva, como se estivesse dialogando com ela. Percebe-se claramente o respeito, sem nenhuma nuance libidinosa. Nem mesmo o beija-mão lhe foi permitido: “...Pego em teus dedos nevados, e querendo dar-lhe um beijo, / Cobriu-se todo de pejo, E fugiu-me com a mão.” (vv.61/64)
A imagem sublimada de Marília (a cândida Doroteia) seria incompatível com os versos seguintes da Lira XXV: “Debalde a meus lábios seus lábios se uniram / E as línguas, lá dentro lutando, exprimiram/ Ardores, que em frases não podem caber./ A coxa roliça, que envida ao prazer,/ Em vão sob a minha gemia delícias.”
Há quem diga que, em verdade, ele não havia escrito as liras para nenhuma das duas. Ele teria apenas adaptado versos escritos na juventude, para uma terceira Marília, quando universitário de Coimbra, e os dedicado posteriormente às Marílias de Vila Rica. Isso pode ser detectado nas entrelinhas da Lira XXXII da 1ª parte.
A Marília oficial, Maria Doroteia Joaquina de Seixas, oriunda de família abastada, ainda adolescente, conheceu o poeta e jurista. Devido à diferença de idade e a divergências ideológicas, o namoro foi inicialmente proibido pela família. Noivaram alguns anos depois, mas o casamento não se concretizou, devido ao degredo do poeta. A solitária Doroteia passou a vida suspirando pelo distanciamento do amado, que se encontrava na África. Para desconsolo dos românticos, que preferiam um Dirceu pobre e suspirante, ele vivia com luxo e riqueza no exilio, casado com uma analfabeta endinheirada, filha de um rico comerciante de escravos. Além disso, ocupava cargos relevantes em Moçambique, devido à sua indubitável competência.
O historiador Tarquínio Oliveira, grande especialista no assunto, em seu livro As cartas chilenas - fontes textuais, confirma a existência de outra Marília, na pessoa de uma abastada viúva de Vila Rica, Maria Joaquina Anselma de Figueiredo (cognomes: Marília, Nise e Laura?). Gonzaga chegou a ter um filho com ela, citado na Lira XIX.
Na Lira XXVII, o poeta chega a desculpar-se junto à Doroteia, pelo relacionamento com Anselma: “Eu sei, Marília, / que outra pastora / a toda hora, / em toda parte, / cega namora / a teu pastor.”
O Governador de Minas, Luís da Cunha Menezes, o homem mais poderoso de Vila Rica, acabou conquistando para si a amante do poeta. Despeitado, Gonzaga escreveu as satíricas Cartas Chilenas, ambientadas em Santiago do Chile (Vila Rica), divulgando todos os podres, falcatruas e corrupções de um pretenso general chileno chamado Fanfarrão Minésio (L. C. Menezes).
As Cartas representam um importantíssimo documento histórico e consuetudinário. Traçam um daguerreótipo da época que precedeu a Inconfidência Mineira (hábitos, aspectos econômicos, políticos, religiosos e morais, assim como intrigas, vícios, indumentárias, festas, mobiliário, alimentação...). A sátira contida nas Cartas abrange o esbanjamento e a má administração do dinheiro público, a hipocrisia religiosa, o apaniguamento dos protegidos, a injustiça social, a violência, o abuso de poder, entre outros desmandos. Segundo o historiador Oliveira, a denúncia contida nas Cartas é perfeitamente legítima, mas não teria acontecido não fora o triângulo amoroso (grifo meu). Daí a importância da existência de Anselma. Como pivô das Cartas, ela teria sido responsável pelo recrudescimento do movimento da Conjuração, já em andamento, causada por diversos motivos.
Tomás Antônio Gonzaga (1744/1810), nasceu em Miragaia, no distrito do Porto, Portugal. Filho de mãe portuguesa e de pai brasileiro, assumiu o cargo de Ouvidor Geral em Vila Rica. Quando chegou a Minas (1782), já não havia a opulência do ouro, mas ainda se conservavam os brilhos de um passado recente.
Foi nesse período que ele conheceu sua futura noiva, Maria Doroteia. Envolvido na Inconfidência Mineira, foi acusado de conspiração e permaneceu recluso durante três anos no Rio de Janeiro. Depois foi degredado para Moçambique, onde permaneceu até a morte.
As treze Cartas, compostas em versos decassílabos brancos (sem rima), escritas por Critilo (Gonzaga), são endereçadas a seu amigo Doroteu (Claudio Manoel da Costa). A grande maioria dos personagens tem nomes fictícios, ou melhor, corruptelas facilmente identificáveis de nomes de pessoas ilustres de Vila Rica. Por exemplo: Minésio (L.C. Menezes); Matúzio (J.A. Matos); Silverino (J. Silvério dos Reis); etc.
Literariamente, as Cartas Chilenas são consideradas como a obra satírica mais importante do século XVIII, no Brasil. Tendo o intuito de denegrir a imagem do rival, o foco central das Cartas são os desmandos do Governador da Capitania de Minas Gerais, entre 1783 e 1788. Elas satirizam a tirania, o abuso de poder, a prepotência, o desrespeito à lei, a venalidade, o nepotismo, as injustiças, a corrupção, os impostos escorchantes, o descomedimento e a libertinagem do chamado “Minésio Fanfarrão”, que fazia do palácio do Governo um centro de orgias. Tais Cartas fomentavam um clima de insatisfação já existente contra o mais alto representante da Metrópole Portuguesa e, ao mesmo tempo, carregavam em seu bojo ideias iluministas de progresso, racionalismo e liberdade.
A Carta XI explicita o golpe definitivo de Menezes contra Gonzaga. Com a chegada do novo Governador, Fanfarrão reserva sua desforra contra Critilo, para os últimos instantes. Convoca reservadamente Jelônio (Jerônimo Xavier de Souza), cabo-de-esquadra do Regimento de Cavalaria Regular, e encarrega-o da doce missão de casar-se com Anselma, mediante promoção ao posto de alferes. Escreve sigilosamente ao Bispo D. Domingos da Encarnação Pontével, solicitando dispensa de proclamas prévios para o matrimônio. Imediatamente após o casamento, Fanfarrão transfere Jelônio para o destacamento da demarcação Diamantina, de modo que o casal ganhe a estrada de Tejuco e avance pelo menos dois dias de marcha, antes de Fanfarrão deixar Vila Rica.
Concluindo, Anselma, figura desconhecida, praticamente inexistente nos livros de História, pode ter exercido, involuntariamente, uma influência efetiva no desenrolar da Conjuração Mineira. A razão é simples. Apesar dos vários motivos para que o movimento existisse, ele recrudesceu com a divulgação das Cartas Chilenas. Gonzaga não compactuava com as falcatruas do Governador. Inclusive já o havia denunciado, por carta, à rainha de Portugal. O fato de perder a amada para um rival detestável fez com que ele decidisse denunciá-lo, evidentemente por motivo de ciúmes, raiva, despeito ou vingança. A distribuição de cópias manuscritas das sátiras pelas ruas de Vila Rica acirrou os ânimos dos inconfidentes e conscientizou a população letrada das irregularidades existentes no Governo de Menezes. Em meio ao descontentamento geral pré-existente, o envolvimento dele com a amada do poeta e, por conseguinte, a redação das cartas satíricas talvez tenham representado a gota d'água para a eclosão da Inconfidência Mineira, cujo desfecho teria acontecido na data marcada da derrama, caso as delações não tivessem ocorrido dias antes.