O meu receio é de estar malhando em ferro frio, ao retornar ao assunto da língua como sistema. Vendo a exaltação, cada vez maior, dos ânimos, e sem esperança de que haja um arrefecimento tão cedo – “quem é intratável não é exigente” (“qui est farouche n’est pas sévère”), diz Victor Hugo, em O homem que ri –, volto ao tema, que aborda a linguagem neutra, mas não se encerra nela, para tentar trazer, eu não diria bom senso, pois seria uma grande pretensão da minha parte, mas argumentos técnicos e sociais, no sentido de contribuir para o esclarecimento de como funcionam a língua e a linguagem.
A língua é um sistema. Qualquer língua, não apenas a língua portuguesa. Por ser um sistema, pode-se conhecer e descrever a sua estrutura, um dos meios mais eficazes para sua aprendizagem e seu conhecimento. Adianto que existe um abismo muito grande entre ser usuário de uma língua e ser conhecedor dessa mesma língua. O usuário se comunica, o conhecedor e estudioso sabe como se dá o seu funcionamento. A partir daí, podemos inferir que as decisões sobre a dinâmica da língua, que resultam em mudanças, devem ser da esfera dos especialistas, os que a estudam, sempre tendo em mente a contribuição que podem dar aos usuários, orientando-os no sentido de usar a língua com uma finalidade maior do que apenas a comunicação diária. No seu limite, o usuário pode atingir a camada mais refinada de uma língua, quando ele é capaz de entender as muitas variações linguísticas e “penetrar surdamente no reino das palavras”, como diz o poeta, e seus variados sentidos e estilos.
Como sistema, a língua abarca uma possibilidade grande de realizações. Estas realizações se mostram como linguagem, capaz de variar conforme a classe social, a região, o grau de escolaridade ou a profissão. A língua, sendo uma só, proporciona uma linguagem diversificada. Assim, temos um processo linguístico curioso em que o sistema permite a realização e as realizações alimentam o sistema, que vai guardando uma infinitude de possibilidades, escolhidas, por sua vez, pelo usuário. Ao longo do tempo, muitas delas se tornarão obsoletas, mas continuarão no sistema, porque podem, por algum motivo, ser trazidas novamente à baila.
O processo de transformação da possibilidade em realização, designando o que é paradigma e o que é sintagma, é importante, pois é nele que se baseia a estrutura de cada língua, espinha dorsal do sistema, nome muito apropriado, tendo em vista que etimologicamente proveniente de sústema (σύστημα), significa um conjunto (sun, συν) que permite erigir algo (stēma, do verbo συνίστημι). É no sistema e no conhecimento de sua estrutura que reconhecemos o que chamamos de lógica da língua. O sistema, por sua vez, não reconhece e descarta o que não entrar nessa lógica, pois não existirá o suporte necessário para que algo se construa e se mantenha firme, de pé, como o conhecimento precisa ser.
São dois os responsáveis por essa construção. Uma estrutura que nos acompanha, desde a nossa concepção, por estar inscrita no nosso DNA, e nós mesmos, os usuários que, de acordo com a sociedade em que vivemos, vamos operando os meios para a alimentação do sistema com o uso. Sim, o uso. Eis o grande mestre e senhor da língua. O uso se faz acompanhar do usuário, nunca se afastando daquilo que o sistema permite na sua infinita possibilidade de realização. Assim é que cadelo é possível, embora não abonado pela norma culta, pelo fato de que o usuário faz uma relação com cadela, tendo em vista que o feminino na língua portuguesa se faz com a supressão da vogal temática -o e do acréscimo da desinência de gênero -a. O usuário, mesmo sem entender o sistema, pode, por contaminação e por intuição, achar que em cadela, o -a é a desinência de gênero, não vogal temática, e criar o seu par opositor cadelo. Repito, o fato de cadelo não ser abonado pela norma culta, não impede o usuário de operar com uma lógica que existe no sistema. Se esta lógica não existisse, cadelo não seria cogitado.
O uso, portanto, opera um processo dinâmico na língua, proporcionando transformações que se constroem no sistema, à espera de serem utilizadas. Muitas delas estão aguardando para ter o seu lugar ao sol, como os pronomes este, esta, isto, que, já passaram a ser esse, essa, isso, mas a norma culta insiste em ir contra o uso de toda uma população. Se estas mudanças forem incorporadas, em pouco tempo cantaste, comeste, partiste se tornarão cantasse, comesse, partisse, também já consagrados pelo uso...
Observe-se que estas mudanças ocorrem, comumente, com os chamados vocábulos nocionais ou lexicais, aqueles que são passíveis de flexão – verbos, nomes (substantivos ou adjetivos), pronome e numerais. Estes dois últimos, a depender do uso, assumirão uma função substantiva (determinado) ou uma função adjetiva (determinante). Com os vocábulos gramaticais – preposições, conjunções... –, isto é mais difícil, pois seu número é o mesmo desde os primórdios da língua. Quando nos referimos aos morfemas gramaticais – vogal temática, desinências de gênero, de número, de pessoa e sufixos de modo e tempo verbais – torna-se, então, impossível, visto que eles só têm sentido quando estão vinculados a um radical, e radicais só existem nas palavras nocionais...
Como usuários, somos capazes de criar substantivos, adjetivos e verbos sem conta. Já pronomes e numerais, ainda que nocionais e flexionáveis, estão sujeitos a um sistema mais fechado do que imaginamos. Os morfemas já citados podem, com o tempo, sofrer modificações ou desaparecer, mas o fenômeno, qualquer que seja ele, serão para ajuste da fala, ditado pela Lei do Menor Esforço. Não há notícia, contudo, de que tenha sido acrescentado algum morfema gramatical na língua portuguesa, além dos já conhecidos, considerando, por exemplo, a passagem do latim para o português. É quase impossível criar novos morfemas. Como se pode ver, o usuário, mesmo contribuindo para aumentar o sistema da língua, esbarra numa limitação imposta por este mesmo sistema.
A desinência número-pessoal da terceira pessoa do singular, em latim, -t, desapareceu na língua portuguesa, tornando-se morfema zero (ø): amat > ama; tenet > tem; legit > lê; audit > ouve. Já a desinência número-pessoal da primeira pessoa do plural, -mus, manteve-se, com uma pequena metafonia, -mos: amāmus > amamos; tenēmus > temos; legĭmus > lemos; audīmus > ouvimos; a desinência da terceira pessoa do plural, -nt, sofreu mais mudanças, sempre ditadas pela necessidade de ajuste do órgão fonador de cada língua específica. Assim, no português, a apócope do -t, levou a uma mudança natural do -n, línguo-dental, em -m, bilabial, mais propício a se tornar um ditongo: amant > amam (amão).
A língua portuguesa não adotou o gênero neutro do latim, de onde provém. E o problema não é a língua ter ou não um gênero neutro, mas alguém querer por decreto ou por ativismo querer neutralizar a língua. Uma língua abrigar o gênero neutro, como o alemão, é uma coisa; haver um ativismo querendo neutralizar essa língua, como alemão, é outra coisa. O que era neutro, em latim, passou, na sua maioria, como masculino para o português, principalmente as palavras da segunda declinação latina, cuja maioria é masculina, tendo o -o, como vogal temática. Assim, na semelhança entre domĭnus, masculino, e templum, neutro, tudo passou ao masculino: domĭnus > dominum > domno > dono; templum > templo. No caso da terceira declinação, tempus e corpus, ambos neutros, transformaram-se em tempo e corpo, ambos masculinos; já a palavra mar, feminina no francês atual, feminina no português arcaico, mas masculina no português hodierno, era neutra, em latim: mare. O neutro plural, cuja desinência de caso é -a, acabou por se contaminar pela vogal temática da primeira declinação, -a, declinação sem neutro, e passou para a língua portuguesa como feminino singular: agenda, legenda, vivenda... Estas modificações aconteceram porque a sua possibilidade de realização se encontrava no sistema, na chamada lógica estrutural da língua. Elas não se operaram pela vontade de uma pessoa, de um grupo ou de ativismos. Elas se deram pela existência das possibilidades que permitiram a sua utilização pela sociedade.
O poeta Horácio, na Epístola aos Pisões, conhecida como Arte Poética, nos fala do poder do uso (versos 70-72, em tradução nossa), elegendo palavras para a realização, do mesmo modo que as destrona com o passar do tempo, havendo a possibilidade de que elas retornem ao uso corrente:
Mūltă rĕnāscēntūr quǣ iām cĕcĭdērĕ, cădēntquĕ 70
quāe nūnc sūnt ĭn hŏnōrĕ uŏcābŭlă, sī uŏlĕt ūsŭs,
quēm pĕnĕs ārbĭtrĭŭm ēst ēt iūs ēt nōrmă lŏquēndī.
Muitos vocábulos que já caíram renascerão, e cairão 70
agora, aqueles que são considerados, se quiser o uso,
que tem o poder da decisão, do direito e da norma do falar.
D. Quixote, personagem de Cervantes, diz algo semelhante a Sancho Pança, mostrando que o poder da linguagem está no uso e no vulgo. Entenda-se por vulgo aquilo que é comum, sentido que a palavra tem em latim. Assim, o vulgo, o povo comum, portanto a população, é que diz, pelo uso, como a língua se transforma em linguagem, ainda que, nem tudo que o vulgo usa possa virar norma. Mas está no amplo reino das possibilidades, fazendo parte do sistema e da estrutura, guardados, per omnia saecula, podendo um dia vir a ser utilizado ou não:
“⏤ Eructar, Sancho, quer dizer “arrotar”, e este vocábulo, ainda que muito significativo, é um dos mais torpes que tem a língua castelhana, e assim a gente curiosa recorreu ao latim, e em vez de arrotar diz eructar, e aos arrotos, eructações, e pouco importa quando alguns não entendem estes termos, pois o uso os irá introduzindo com o tempo, até que com facilidade se entendam, e isto é enriquecer a língua, sobre a qual têm poder o vulgo e o uso.”
D. Quixote, Livro Segundo, capítulo XLIII, em tradução nossa.
Em síntese: a língua opera com um sistema montado numa estrutura, permitindo realizações diante das suas imensas possibilidades, sempre estas ocorrendo a partir dessa lógica estrutural. A escolha de eructar por arrotar, enriquecendo a língua, só se dá porque o sistema permite. É nesse momento que vejo a inviabilidade da imposição de uma neutralização da linguagem (realização), por ela não se encontrar em nenhuma língua (possibilidade). Por outro lado, para haver a neutralização pretendida, deveria haver uma lógica que permitisse, a quem conhece o sistema, utilizá-la na comunicação sem grandes dificuldades. Como isto pode acontecer se uns propõem todes, outros todxs e, ainda, outros tod@s? Como seriam as flexões, mesmo que apenas um dos termos fosse o eleito pelo uso? Adianto que se acontecer essa assimilação pelo sistema, que vejo muito difícil de ocorrer, ela se dará pelo uso, não por uma legislação. A imposição, através de uma lei, não irá modificar o uso. Mussolini tentou isto com o pronome lei, abolindo-o por decreto. Não funcionou. Após a sua queda, o pronome retornou e ainda se encontra corrente na língua italiana.
O Supremo Tribunal Federal não deveria se meter nessa discussão. Ali não há especialistas em língua. Do mesmo modo que não se pode proibir o uso de uma forma de linguagem, também não se pode impô-lo. Vejo aí o último argumento para esta discussão: as pessoas são livres para falar da maneira que quiserem, só não podem impor determinado uso, por puro ativismo ou com a desculpa de que se trata de linguagem inclusiva – não é – e que isto dará visibilidade a quem deseja se neutralizar, não se vendo nem como masculino, nem como feminino. Ora, todos estamos sempre suscetíveis, em algum momento ou circunstância, a exclusões e invisibilidades. Não é um fenômeno exclusivo de A ou de B. Atinge todos. Por outro lado, a biologia está pouco se incomodando com o que as pessoas pensam de si mesmas. Só há masculino e feminino. A ciência não se sujeita a opiniões. Ela existe per se.
Esclareço que meus argumentos não são os únicos, a língua está sempre aberta a contribuições, mas ela é quem impõe o que deverá ser assimilado ou não. O mais é falta de conhecimento do que pode o sistema linguístico, associado a uma imposição de ativistas. Somos seres classificadores, o que costumo chamar de homo taxonomicus. Sem classificarmos nada entendemos. Mas não basta classificar, é necessário que a classificação se traduza em um sistema, cuja estrutura seja decodificável. É isto ou o caos.
Que não se proíba, mas que, sobretudo, não se imponha a novidade. Aos adeptos da neutralização da linguagem, no entanto, é necessário que escolham um paradigma, sim, um paradigma, pois é a estrutura que o sistema exige, para poder funcionar e orientar o usuário, ainda que ele não seja estudioso do sistema. Sem um paradigma a seguir, não teremos língua e a linguagem será um amontoado de palavras assistemáticas. Uma vez escolhido um paradigma, que as flexões sejam feitas de acordo com ele, mantendo um padrão razoável de conhecimento da língua. A menos que se queira também a neutralização da norma culta, o que significará a derrocada da língua.
Acredito que se o bom senso prevalecer todos ganharão e um dia, não se sabe quando, veremos se deu certo ou não a, hoje, forçada neutralização da língua.