Foi preciso que alguns meses se passassem após sua partida para que eu tivesse coragem de falar sobre ele.
Eu o ganhei, há uns 40 anos, de um aluno da zona rural que vivia de caçá-los e de vendê-los a preço de ouro. Só depois é que eu soube que ele me deu aquela ave de presente porque ela tinha nascido com uma patinha deficiente e ninguém a compraria.
Naquela época, pouco se falava, pelo menos no meu entorno, de educação ambiental, de consciência ecológica e de proteção à vida animal. Era muito comum as pessoas prenderem pássaros em gaiolas, assim como terem soltos em casa papagaios e outras espécies parecidas.
Eu o ganhei, há uns 40 anos, de um aluno da zona rural que vivia de caçá-los e de vendê-los a preço de ouro. Só depois é que eu soube que ele me deu aquela ave de presente porque ela tinha nascido com uma patinha deficiente e ninguém a compraria.
Naquela época, pouco se falava, pelo menos no meu entorno, de educação ambiental, de consciência ecológica e de proteção à vida animal. Era muito comum as pessoas prenderem pássaros em gaiolas, assim como terem soltos em casa papagaios e outras espécies parecidas.
Foi muito difícil cuidar do bichinho. Quando chegou, era todo pelado e só comia um tipo de papa de farinha de mandioca que colocávamos em seu bico, o qual se abria a um pequeno toque com uma colher de chá. Foram meses até que as primeiras peninhas verdes surgissem. Aos poucos, foi crescendo e ficando lindo, reluzente.
Ele se tornou meu companheiro. Vivia solto pela casa, dormia no espelho da minha cama e me acordava com pequenas bicadas em minhas orelhas.
Acho que a vida dele era legal. Corria feliz, fazia muito barulho, ria alto e dizia algumas palavras muito bem articuladas. Na verdade, parecia gente...
Um dia, ele descobriu que a casa tinha um quintal e que no quintal havia um pé de goiaba bem grande e uma videira, cujos ramos se espalhavam por quase toda a extensão do terreiro.
Essas plantas eram as meninas dos olhos do meu pai. Diariamente, ele as aguava e passava horas e horas a admirar os brotos das goiabas e os pequenos cachos de uvas que aos poucos iam surgindo na parreira.
Quanta alegria teve o louro ao conseguir subir goiabeira acima, até o último galho. Foi uma festa! Era tanta risada à moda dele que quem passava na rua ao lado parava para observar.
Só que, ao amanhecer de um certo dia, quando acordamos, todas as goiabas, quase que em flor ainda, e todos os cachos de uva estavam no chão. Com seu bico afiado, o papagaio fez o maior estrago. Não deixou nenhuma fruta para contar a história.
O momento da descoberta foi de muita tensão. Meu pai ficou furioso e inconformado. Só sossegou quando prendeu o irrequieto bicho em uma gaiola reforçada e bem fechada.
Desde esse episódio, tendo perdido sua liberdade, o exultante pássaro falador passou a ter muita raiva de quem quer que chegasse perto dele. Ninguém era doido de colocá-lo mais no dedo e muito menos nos ombros, como antes eu fazia.
Se alguém esquecia a gaiola dele aberta, era um Deus nos acuda, porque ele saía correndo atrás das pessoas e só minha mãe conseguia, a muito custo, trancafiá-lo de volta.
Mesmo na prisão, o folgado tinha lá suas manias e exigências. Percebia a entrada de qualquer pessoa estranha e já fazia muita algazarra para chamar a atenção de quem estivesse em casa. Ao anoitecer, era grande o alvoroço para que lhe cobrissem a gaiola e apagassem a luz do alpendre em que ficava. Gostava de dormir no escuro.
Algum tempo depois, eu me mudei para outra cidade, fui morar num pequeno apartamento e meu papagaio teve que ficar na casa da minha mãe até o dia em que amanheceu triste, cabisbaixo, sob o poleiro, sem querer comer, beber água e muito menos falar.
Morreu tão rápido…
Foi muito triste voltar à casa de minha infância e não mais vê-lo nem ouvi-lo. Foi tão desolador perceber o quanto errei em criar aquele bichinho, aceitando que alguém o tivesse tirado do seu habitat, sendo cúmplice do crime, mesmo que por ignorância.
Não sei se vou me perdoar. Só sei que essa história me marcou e revelou em mim a face de uma crueldade que eu não sabia que tinha.