A poesia não é fácil de se fazer, nem de se entender, perdoem o óbvio. Principalmente ao se valer de metáforas, de traços emocionais singulares do autor, sentimentos vivenciados no passado, no instante presente ou no que há por vir.
As ideias que constroem a linguagem poética são tão infinitas quanto a imaginação, pois não há limites do que se experimenta por meio do pensamento. Se quisermos nos imaginar agora mesmo sentados em um dos anéis de Saturno, a contemplar a noite cósmica, tal imagem se dará independentemente da razão, da distância e do tempo para lá se chegar. O sentir imaginário é instantâneo, ultrapassa dimensões e quaisquer limites do real. Por isso que dizem ser a velocidade do pensamento a maior de todas, com a qual os espíritos, poéticos ou de outro mundo, se locomovem.
Como a poesia, a música não se circunscreve a tudo o que já foi criado, rabiscado em paredes, pergaminhos, partituras, desde os mais antigos registros históricos. Além do tempo, são linguagens que continuam vivas, criadas e recriadas tão extraordinariamente quanto infinitos são os sonhos e fantasias. A eterna probabilidade de combinações de notas musicais, tonais ou atonais, consonantes ou dissonantes; de palavras e frases, lógicas ou ilógicas, sentidas ou figuradas, produzirá infindáveis maneiras de se conceber um tecido artístico de abrangência incomensurável.
Certa vez, nos perguntaram se ainda havia algo a ser criado no mundo sinfônico, no mundo das sonatas, no mundo da música enfim. Respondemos que evidentemente sim! Nunca se extinguirão as possibilidades criativas no universo das fusas e colcheias. Como jamais se findarão as habilidades poéticas no mundo dos sonetos, das trovas, poemas e epigramas. Enquanto os “eus imaginários” gozarem do legítimo princípio da diversidade (leia-se Hélder Moura), que não se exerce separado de seu princípio irmão — o da liberdade — teremos música e poesia.
Mas nem sempre o ouvinte ou o leitor consegue entender e imergir integralmente no âmago, na essência da autoria da arte poética ou musical. Ao considerarmos infinitas as origens da cordura, da intuição, do siso, de tudo o que inspira o artista, seja nos instantes primeiros, durante a realização ou na conclusão de sua obra, pode-se concluir que as possibilidades criativas são tão diversas quanto a emoção imaginativa de quem as aprecia.
Nem sempre o leitor associará de imediato um "elmo" ao casco do caranguejo, ou "monjas em voto de silêncio", nas corujas em "concha", da poesia de Sérgio de Castro Pinto. Tão pouco entenderá que nos concisos epigramas de Milton Marques Júnior "a sátira vence a razão, e tem na fina ironia o raio fulminante que derruba o baobá".
Recentemente uma leitora deste espaço literário confessou não ter entendido “absolutamente nada de um poema de Jorge Elias Neto”, apesar de tê-lo lido três vezes seguidas. Seriam as metáforas? Seria a impermeabilidade da névoa, incidental ou proposital, com que ele revestiu o que pretendeu dizer? É mesmo imponderável — como costuma ensinar a professora Ângela Bezerra de Castro —, a recepção literária, tema que resultou em estudos e teorias até hoje não conclusivos.
A confissão humilde, sincera e bem intencionada da leitora suscitou-nos curiosidade sobre o tal poema. Tão curto e tão extensamente profundo, tão claro e nítido quanto difuso e etéreo:
QUAL A FACE QUE SE DÁ AO TAPA?
Do lado de cá do muro da eternidade,
plantam-se lírios e desavenças,
e na parede de (h)eras encravadas
a certeza da escalada dos justos
se perde sob as avencas pensas.
Vamos tentar:
Logo no título, o poeta contextualiza suas ruminações filosóficas acerca de coragem e humildade. A expressão “Dar a cara à tapa” nos remonta à atitude de bravura para afirmar convicções, tanto quanto de estar disposto a pagar pelo erro. No Evangelho, há grande lição de humildade, perdão, mansidão, proferida por Jesus no Sermão da Montanha, ao nos ensinar que não é na violência que reside a solução para a violência. Que é com amor, compreensão e perdão que se neutraliza uma cadeia de sentimentos negativos, apenas passível de ser interrompida com vibração oposta: “Ao que te bate numa face, oferece-lhe também a outra; e ao que te tira a capa, não lhe negues a túnica” — ensinou o Nazareno.
O título do poema reflete dúvidas sobre como agir exatamente. Ao indagar sobre “qual face deve ser dada”, estaria o poeta a também perguntar se é correta tal submissão, mediante um mundo cheio de conflitos e discórdia?
A dúvida se reforça a seguir:
Do lado de cá do muro da eternidade,
plantam-se lírios e desavenças
Aqui o autor se coloca na História, em meio à diversidade de contradições que permeiam a conduta humana desde que o mundo é mundo, marcada pelo bem e pelo mal, ao se referir a “lírios e desavenças”. Um leque de ideias estaria contido nesta expressão: Possivelmente, uma sutil referência a outra passagem do Novo Testamento, na menção aos lírios, plantados em desavença. Na lição “Olhai os lírios do campo”—, também há o convite a reflexões sobre as mensagens que a Natureza nos dá. Como aos cenários das duras experiências enfrentadas por povos explorados, sob permanente jugo do cruel poder exercido àquela e em outras épocas, senão até hoje:
e na parede de (h)eras encravadas
a certeza da escalada dos justos
se perde sob as avencas pensas.
Aqui se confirma a imagem retratada pelo poema no palco desta triste realidade, perpetuada em “eras”, apesar da beleza das “heras”, que brotam verdes nos “muros das lamentações”. Mas que não faz ecoar esperança alguma no sentimento do poeta, cuja única certeza é que a justiça, tão desejada e merecida, perde-se invariavelmente sob as “avencas pensas", sob as curvas tortuosas e “irracionais” do destino idem perdidas entre as “Folhas de Relva”, daquele outro poeta que nada conhecia “além de milagres”.
Assim, estimada leitora, espero ter contribuído — embora receoso de que possa estar idem confuso, ou equivocado sobre este poema. Versos que soam como amplo breviário de epítomes, nos quais Jorge Elias, o “cardiologista poeta” de Vitória do Espírito Santo quis transmitir — quem sabe —, sua desilusão, talvez momentânea, eivada de dúvidas e incertezas sobre os desígnios que nos aguardam. Talvez nem ele mesmo saiba se é válido dar a cara à tapa sem ter "a certeza da escalada dos justos"...