Os pombos fazem um banquete na calçada da praça, vasculham qualquer coisa que os alimente, ciscam toda a área. Eles ocupam também a fiação, empoleirados e, a cada dia, retornam com novos pássaros. Os homens vasculham restos que os alimentem. Buscam a sobrevivência em latas de lixo, portas de lojas, embaixo de marquises. Ilícitas presenças no horizonte barradas por muitos concretos, a mais dura, a realidade, que de tão forte e violenta causa o grito silencioso do olhar do menino pobre de posses, rico de ausências, onde a fome é presença.
O filme continua a passar. Recortes jantados pela fome de informação. Falas, botas, cegueiras imaginativas, moído tudo e filtrado pouco na mudez dos gestos e na cegueira da língua. Real abandono das coisas da vida, do amor ao sorriso, restou a teimosia de viver.
E segue o baile. Pois é necessário filtrar o dicionário para encontrar conceitos viáveis para os moribundos fantasmas do 8 de janeiro. Eles precisam ser exorcizados e amiúde exilados onde suas papudas línguas não sejam alimentadas e silenciem. Que sejam picotados os recortes do falatório gratuito que embrenham muitos ouvidos.
Lá fora, a temperatura cai para esfriar corpos encolhidos embaixo de pontes, em cantos de paredes, descobertos e condenados à revelia. O outono chega, a chuva molha mais. E segue a mão nua a pedir clemência, a requerer o seu pedaço do pão mal partido e menos ainda partilhado.
Ao fundo, uma música indecifrável, um recorrente espasmo, talvez apenas um lamento a ser até romantizado. Feito cachaça ruim que o sujeito bebe por puro vício, doente, encostado, só para fazer efeito anestésico, enganar a fome, na verdade, ser enganado. É feito mágica de truque barato: ou não funciona ou é mal interpretado.
A parceria é servida numa bandeja em histérica saudação. A fome e o alimento precisam ser conectados. A mente até se distrai, mas se o estômago está vazio, a perturbadora sensação é logo lembrada. O homem se espreme, se derrete e enfraquecido nem lacrimena, pois o corpo desobedece, sacoleja, reprime sentimentos amenos, sob a falta nutritiva. E, se lhes sobram forças, explode em tentativas para recuperar a própria vida. O rito repetido só amplifica a dor, a falta.
O fim é a destruição de olhos entrecortados. O brilho por baixo da pálpebra se foi, restou o fixo mirar de ao vago. Talvez a buscar um pedaço do pão seco e meio bolorento, duro da véspera da hora derradeira. Fome é soco no estômago. Até poética para quem não a sente, mas terrivelmente perturbadora para o íntimo de sua convivência.
Há fome de alimento e de ideias, enquanto outros comem porcarias pela boca e pelos pensamentos. Uns se engasgam, mas muitos envenenam a todos, feito praga que nasce na grama, como troço torto. Já não se entrega moedas na mão do pedinte, não se acolhe com um prato de comida o mendigo, não se abriga o andarilho. Logo, indigente, será sepultado. Já os pombos, ao contrário, prefere-se que sejam bem alimentados. A paz não voa, foi encontrada por um corpo sepultado.