Victor Hugo, apesar do estilo familiar ao seu leitor habitual, é sempre imprevisível. É o que constatamos em O homem que ri (L'homme qui rit, 1869. In: Oeuvres complètes, Roman III, Paris, Robert Laffont, 2002), obra da madureza, em que predomina um olhar sobre a monarquia inglesa, na abordagem de uma particularidade da história, o momento próximo à experiência republicana na Inglaterra, a partir da revolução encabeçada por Oliver Cromwell (1642). A história e a política estão na essência desta obra, que contempla, ainda, os conflitos entre o amor puro e o amor degradado, a misantropia e filantropia; a espiritualidade e a sensualidade, mas sempre mantendo a rota em direção à unidade da trama – dura crítica à nobreza da Inglaterra, em contraponto com a miséria que ela trabalha para construir.
O resultado é um mais um romance inesquecível na obra desse grande escritor.
O homem que ri apresenta uma estrutura impecável. Sem deixar pontas soltas, todas as ações ou indícios de ação são retomados ao longo da sua composição, revelando o domínio do escritor sobre a técnica narrativa, que ele expõe sem se fazer de rogado: a base de qualquer narrativa é a necessidade, de que fala Aristóteles na Poética (ἀναγκαῖον, 1451a), no sentido de que nada que apareça na trama pode ficar sem utilidade, como diz o próprio Hugo: “À tout fait se rattache un engrenage” (“A todo fato se liga uma engrenagem”, Parte II, Livro V, Capítulo II, “O que erra não se perde”, p. 642, em tradução nossa).
Os dois capítulos preliminares, Ursus e Comprachicos, parecem não ter qualquer relação com o restante do romance. O que vem a seguir, parece narrativa dispersa: um menino abandonado em um porto, durante uma tempestade de inverno, resgata, dos braços de uma mãe morta pela fome e pelo frio, uma criança de peito, e segue em frente, desafiando as piores adversidades. Uma garrafa jogada ao mar, contendo uma mensagem assinada por náufragos, prestes a morrer, nos deixa ao sabor das ondas, tanto quanto a garrafa em si. As páginas sobre a nobreza inglesa nos distanciam ainda mais do núcleo da trama, sobretudo quando em um determinado momento a narrativa se atém a um personagem, Barkilphedro, homem vingativo, malévolo, invejoso, páginas que se transformam num verdadeiro tratado sobre a inveja. Desnorteia-nos o pedido desse personagem, à duquesa que o protege e de quem ele quer se vingar, a despeito da proteção recebida, para ocupar um cargo, que, aparentemente, é apenas uma sinecura, em nada sendo útil à narrativa – Abridor de Garrafas do Oceano... Tudo se encaixa, no entanto, porque, longe de ser uma dispersão sem estrutura, a narrativa foi calculada e organizada por um grande escritor, que sabe juntar as várias pontas do que minuciosamente imaginou.
Ainda que algumas páginas sobre a nobreza e seus ritos possam parecer maçantes, o leitor costumeiro de Victor Hugo seguirá adiante, pois ver-se-á completamente fisgado pela curiosidade em desvendar o mistério da criança abandonada e da que ela resgatou. As pontas começam a ser amarradas e a aparente dispersão vai ganhando o contorno de sentido, a partir da Segunda Parte do romance, “Por ordem do Rei”, quando, no Livro Segundo, intitulado “Gwynplaine e Dea”, aparece o protagonista da história, a partir de quem surgirá o título do romance.
Sem querer tirar do leitor o sabor das descobertas, percorrendo as múltiplas vias desse caminho narrativo, fazendo de O homem que ri um intrincado dédalo, diremos que Gwynplaine, saltimbanco treinado por um misantropo, Ursus, que troca de identidade com um lobo, a que chama de Homo (Homem), vive desde os 10 anos, estando, então, com 25, em companhia de Dea, garota de 16 anos, ambos imersos na idealização de um amor puro, até que o aparente acaso apresente a Gwynplaine a mulher, o sexo feminino, em seu viço de fêmea, na pessoa da duquesa Josiane.
Dea é para Gwynplaine a idealização; a duquesa é a fêmea, que ele na sua pureza, não conhecia ou não conseguia ver em Dea, apesar de todo o amor que lhe dedicava. É o início de uma luta que se trava entre a pureza e o instinto, conforme vai se tornar mais nítido no Capítulo III, “Eva” (Segunda Parte, “Por ordem do Rei”, Livro Sétimo, “A Titã”). Trata-se do momento em que veremos, além da inquietação do espírito, a estupefação de Gwynplaine pela duquesa, que o faz, pela primeira vez, olhar através da mulher e enxergar a fêmea; ver por trás do ideal de pureza, o instinto que comanda a carne, choque entre um amor espiritual e o amor do desejo sensual e erótico.
Trata-se de uma das mais belas páginas da literatura, de que ressalta, a despeito de ser um romance, a pura poesia, no conflito entre a sensualidade e a pureza. Podemos até dizer que há uma certa ousadia sensual e erótica, eivada de cinismo, nunca antes vista, em Hugo, ao menos nos romances, na construção da personagem da duquesa Josiane. Entediada com a futilidade da nobreza em que vive, ela deseja a degradação; mulher vinda da argila, ela deseja a lama; estando nas alturas, deseja rastejar; loba para todos, deseja ser cadela com quem ela, deliberadamente, escolhe para amante. Desse modo, ela amálgama em si a pureza de sua virgindade e o fogo da lubricidade mais degradante; Eva que, em lugar de ser tentada por Satã, faz-se ela mesma o próprio Satã (“Eva pior que Satã”, p. 693. Veja-se também o Capítulo IV, “Satã”).
É de uma construção a impressionar a transformação que vai da imponência do mito à impotência do ser humano. Como o capítulo se chama “Eva”, a referência a Adão se faz óbvia, assim com as demais referências ao masculino, por absentia: Eva, Messalina, Diana, Vênus, Hebe, Sereia, eis a sucessividade das visões de Gwynplaine sobre a duquesa. Ele, um Adão, no deslumbramento da primeira visão de Eva (“Ele estava, a um só tempo, petrificado e perturbado”, p. 691); Ácteon, flagrando Diana, a deusa virgem no banho, com um toque despudorado de Messalina (“Era uma jovem? Era uma virgem? As duas. Messalina, presente talvez no invisível, devia sorrir, e Diana devia velar”, p. 692); Urano emasculado, para criar Vênus, a deusa do Amor (“E ela se oferecia, inabordável e soberba, a tudo o que passa, aos olhares, aos desejos, às demências, aos sonhos, tão altivamente adormecida sobre o leito de seu quarto de mulher nobre, quanto Vênus na imensidade da espuma”, p. 692); Hércules diante de Hebe, a deusa da juventude (“Ele havia previsto Cérbero e encontrava Hebe”, p. 693); Ulisses, temendo menos os escolhos do que as Sereias (“O escolho não é o rochedo, é a sereia”, p. 694), desejando o naufrágio... Em todas as situações, a tentação e a perdição, em suas múltiplas faces. Por fim, com a transmutação de Josiane em Satã, temos apenas o homem, não mais o mito, espicaçado pelo instinto, mas impotente diante da perda do que deseja.
A transformação da Eva em Satã, explica-se pelo fato de que a duquesa Josiane só deseja Gwynplaine por ele ser disforme e de uma classe inferior à dela, a classe mais baixa possível, a do ator de rua e de feiras (bateleur). Gwynplaine fora, em criança, submetido, à força, a uma cirurgia que lhe imprimiu à boca um sorriso perene, daí ser ele o homem que ri. Quando Josiane o descobre Lord Barão e Par de Inglaterra, e destinado a casar-se com ela, ela o rejeita. Sua lubricidade e sua alcova, diz ela, são apenas para os amantes. Ter Gwynplaine como marido, ambos sendo igualmente nobres, é dar continuidade ao tédio, à futilidade e à inutilidade em que a nobreza vive mergulhada. Josiane deseja, descendo de sua alteza, a ruptura das regras e a emoção de rastejar.
Gwynplaine, ao contrário, lutando contra o apelo dos instintos, usará a sua posição nobre para denunciar a exploração e a miséria da população, em discurso memorável, na sua introdução na Câmara dos Lordes:
“Eu venho vos denunciar a vossa felicidade. Ela é feita da infelicidade do outro. Vós haveis tudo, e este tudo se compõe do nada dos outros”.
Segunda Parte, Livro VIII, Capítulo VII, p. 739
Gwynplaine vence a tentação da luxúria e do luxo; escapa à perdição de sua honra e da sua nobreza interior; à mão férrea da inveja, da vaidade e da injustiça, que se abatem, cada vez mais forte sobre os homens, os puros e os pobres, sobretudo. Os detalhes, deixamos para que o leitor de Hugo possa descobri-los, ao longo dessa obra, uma das mais políticas e mais invectivas do escritor de Os miseráveis, voltando-se contra a riqueza imoral da nobreza absolutista inglesa erigida sobre os abusos e os privilégios, e residindo numa superfluidade criadora de castas intransponíveis. O homem que ri é o esgar da população massacrada pelos impostos, humilhação e miséria:
“Este riso é um produto das torturas. Este riso é um riso forçado. [...]. Eu represento a humanidade tal qual seus mestres a fizeram. O homem é um mutilado. O que me fizeram, fizeram ao gênero humano. Deformaram-lhe o direito, a justiça, a verdade, a razão, a inteligência, como a mim, os olhos, as narinas e as orelhas; como a mim, puseram-lhe no coração uma cloaca de cólera e de dor, e sobre a face uma máscara de contentamento”.
Compreende-se tanto mais a indignação de Victor Hugo, quanto sabemos que o livro foi escrito nos longos anos de exílio em Guernesey. A ironia com os poderosos se revela em vários momentos, seja quando o narrador fala da aceitação da opressão (Segunda Parte, Livro Primeiro, Capítulo I, “Lorde Clancharlie”), seja na descrição minuciosa dos rituais fúteis, para admissão como Par de Inglaterra, na Câmara dos Lordes (Segunda Parte, Livro VIII, Capítulos III, IV e V). Ao leitor desatento, as descrições e explicações do funcionamento da nobreza, seus ritos e seus luxos mostram-se maçantes e, em última análise, deveriam ser retiradas da narrativa. Nada mais errôneo. Essas passagens são indispensáveis para a criação do alicerce sobre o qual será construída a alegoria do golpe de estado de Luís Bonaparte, que resultaria no exílio do escritor por quase 20 anos, além de serem necessárias à compreensão dos crimes de uma monarquia absolutista contra a população.II, VIII, VII, p. 745
Como é de hábito nas suas três últimas obras – Os trabalhadores do mar (Les travailleurs de la mer, 1866), O homem que ri (L'homme qui rit, 1869) e Noventa e três (Quatrevingt-treize, 1874) –, o mar tem uma força inimaginável, no seu duplo de tranquilidade e tempestade, de planície e de abismo. São romances entrelaçados pelo exílio do autor, em uma ilha no Canal da Mancha. Por isto a resposta taxativa de Gwynplaine, aos lordes, quando da sua primeira participação na assembleia, posicionando-se contra a aprovação do aumento da provisão anual de cem mil libras esterlinas para o príncipe Georges, marido da rainha Ana. À pergunta “Quem é ele? De onde ele veio?”, Gwynplaine responde: “Venho do abismo. Eu sou a miséria. Mylords, eu tenho a vos falar (“Du gouffre. Je suis la misère. Mylords, j'ai à vous parler.” p. 738), numa referência ao mar e a sua condição de criança órfã, desembarcada de um navio e abandonada durante uma tempestade, para morrer.
O abandono do menino Gwynplaine, no inverno, em Portland, é alegoria do exílio do escritor, bem como o naufrágio do navio que o abandonou sugere o naufrágio da democracia republicana francesa, entre 1851 e 1870, quando do Terceiro Império. A reviravolta do personagem, de menino abandonado a Lord, Par da Inglaterra, é também alegoria do direito reconhecido, após todas as vicissitudes ocasionadas pela queda da democracia e a instauração de um estado policial e autoritário, com o golpe de Luís Bonaparte. Gwynplaine revela-se contra a monarquia, denunciando-a do mesmo modo que Hugo rejeita a anistia de Napoleão III, não deixando cooptar-se. Podemos constatar, então, que os três citados romances tratam das relações entre França e Inglaterra, sendo os dois últimos um contraponto entre monarquias absolutistas que passam por revoluções republicanas, uma fracassada, a da Inglaterra (1642), outra exitosa, a da França (1789).
O homem que ri, na sua simbologia política, tendo a ironia como bússola que aponta para a denúncia da monarquia parasitária promovendo a miséria, é das mais excepcionais obras jamais escritas.