Lemos outrora que "não raro a cicatriz desaparece, mas fica sangrando"; esse sangramento poderá ocorrer com o ser humano e não com obras literárias. A literatura assemelha-se ao sonho: não envelhece e sempre assegura o vai-e-volta. Esse "vai-e-volta" é responsável por estudos em torno de autores esquecidos ou consagrados. Em homenagem à artista paraibana Valéria Antunes por sua doação ao Tribunal de Contas do Estado da tela ARIANO SUASSUNA transcrevemos nossa comunicação à Universidade Estadual da Paraíba, em 1995. Sapiens, ludens, faber.
Pensador lúdico. Só ele mesmo poderá, talvez, resumir-se a si mesmo. Filho do Presidente João Suassuna e da extraordinária Ritinha Suassuna, saiu de Taperoá e fez-se representante da Literatura Brasileira no mundo. Não é à toa que sua obra é objeto da pesquisa nacional e internacional. De Luciana Stegagno Picchio a Silvano Peloso (como constatamos em nossa recente missão na Universidade da Itália); de Rosenfeld a Silviano Santiago, de João Nuno Alçada e Annick Moreau, de Eduardo Portella a Antonio Quadros, de César Leal a Joel Pontes, a escritura artística de Ariano Suassuna segue como desafio para a Teoria e para a Crítica da Literatura.
E quem esquecerá o Teatro de Estudantes de Pernambuco, (1945), com o imortal de Taperoá ao lado de Borba Filho e Aloísio Magalhães? O teatro Popular do Nordeste, vanguarda estética plantada em Recife? O advento da Orquestra Armorial (1970) e do Quinteto Armorial (1971). Os trabalhos de Extensão Cultural na UFPE (1970-1975) e a Orquestra Romançal (1975). Quem esquecerá estas marcas, pioneiras e originais, que comprovam um projeto estético centrado no mágico e na vida, na xilogravura e no espetáculo, no oral e no artístico. Ao lado de Brennand, Samico, Borba Filho, Joel Pontes e tantos outros, Ariano Suassuna exorciza o regional estreito e funda uma nova arte brasileira, "a partir das raízes populares de nossa cultura", como ele próprio afirmaria.
Arte de Ariano Suassuna @arianosuassuna
E quem esquecerá o Palhaço encerrando o espetáculo da Compadecida,. A recriação do mamulengo por Benedito (Farsa da Boa Preguiça). A evolução do Homem em A Pena e a Lei e o "quiproquó" doméstico de Dona Guida (O casamento suspeitoso). A retomada plautínica no euricão de O Santo e a Porca? Ouem esquecerá a magistral construção de Sinésio, Alumioso e Donzel Branco? Pedro Beato e Eusébio Monturo? Os dois penicos fazendo o contracanto da nobreza, na mais dessacralizada das disputas?
Tudo isso sem aludirmos aos estudos críticos sobre Capiba, Brasil/África, Rodrigues de Carvalho, Guimarães Rosa e às páginas de Estética da autoria de Ariano Suassuna.
Diante de obra tão rica, tão séria, tão plural, negamos "A Intertextualidade das Formas Simples", ensaio que publicamos no passado ano de 1976. Negamo-lo radicalmente. Como negamos também qualquer estudo que se limite ao levantamento de fontes ou matrizes textuais na obra do imortal paraibano. É verdade que os narradores de Ariano Suassuna convocam lauto/Shakespeare/Calderón/Moliére. Convocam o medieval francês/mou-risco/português. Dialogam com a Bíblia, com as Formas Simples, com o Cordel. Reatualizam o teatro épico e a comédia del'arte. Convivem com o messianismo porque escutam a sociedade nordestina. Desrealizam os discursos da culinária, da História, da Geografia, da Cabala e da Heráldica. Misturam os significantes da antiguidade e os significados da modernidade. Fundem o culto, o religioso, o popular.
Os narradores de Ariano Suassuna dialogam com o distante e o perto. Com a hispanidade e a nordestinidade. Com Deus e o Diabo. Convocam inúmeras vozes da Epistemologia para construir sua própria voz: polifônica, única, original.
Por esta clave, a obra de Ariano Suassuna - dramaturgia e ficção - supera a "Intertextualidade das Formas Simples". supera as supostas fontes. Transcende as meras transposições para ser ela mesma, na sua individuação, por sua eternidade. Repetimos em salas de aula que a Teoria da Literatura ainda terá de viajar muito. Ela já nem sabe onde colocar a Pedra do Reino: seu narrador aceita os arquitextos e, ao mesmo tempo, dribla-los, não se curvando a nenhum deles. Ao recriar o popular e o erudito, o narrador de Ariano Suassuna transgride as periodologias oficiais, atropela todos os cânones e instaura sua narrativa própria, seja ela épica ou dramática.
Quando muito, podemos comparar o conjunto da obra de Ariano Suassuna ao painel transtextual, concebido por Gerard Genette, sem a pretensão de aprisioná-lo nas grades dogmáticas de certas interpretações redutoras. Sob este ângulo, relemos títulos/subtítulos/intertítulos/epígrafes/dedicatórias/prefácios/posfácios e, sobretudo, o código iconográfico, não como figuras acessórias e sim como paratextos vinculados às artes plásticas.
Já o rastreamento das considerações poéticas ou teóricas nos sugere uma "demanda novelosa", em busca do texto que se postula, da obra que se deseja. Ouem sabe, "a obra máxima da humanidade"? São esses metatextos índices do espírito contestador, do talento criador de Ariano Suassuna.
Quanto às interferências hipotextuais, repetimos, elas diluem-se no tecido artístico do autor, dispensando leituras genéticas ou textuais. Mais eficaz que sair pinçando as matrizes de uma obra, é mergulhar nos livros de Ariano Suassuna, buscando a estrutu-ra/serpentina, entendendo a tecelagem neobarroca, perseguindo a engenharia espontânea e encantatória, comungando a lógica dos sonhos e da alucinação.
No momento em que o grande artista da palavra obtém um alto coeficiente de transformação das categorias para/hipo/e intertextuais, ele nos põe frente ao "reino do faz de conta" - ali, onde a transcendência do texto é a própria literariedade.
E assim que revisitamos Ariano Suassuna. Neste reencontro percebemos melhor a ambiguidade de uma escrita feita de absorções e rejeições. Como seus quadros, cenas e capítulos giram giros de caleidoscópio...
Ilumiara A Coroada (Refúgio dos Suassuna), Poço da Panela (Recife/PE)
@fazendasantigas (YouTube)
Nas curvas deste exercício oblíquo, enxergamos uma percepção carnavalesca de mundo. No universo do amarelinho ou no universo do vai-e-volta, a paródia é procedimento carnavalizador. É quando o pícaro é mais nordestino! É quando os "penicos"de Samuel e Clemente destronizam elmos, mitras e coroas imperiais". E quando Rômulo e Remo se acordam para ver o filho da Princesa Isabel amamentado por uma onça! É quando Pedro Beato e Eusébio Monturo são mais lindos que os velhos do Restelo... É quando a bicha Bruzacã é mais forte que o gigante Adamastor…
@fazendasantigas (YouTube)
É quando podemos ler uma carnavalização paródica do Brasil. veiculada através do discurso armorial-popular- -brasileiro, o mais eficaz dos suportes significantes.
Arianamente. É quando a "Musa incandescente/do deserto do Sertão" parece advertir: no território do "vai-e-volta" ninguém tem segurança de nada!...