A lua branca boiava no meio da travessia, no meio do São Francisco, no antepenúltimo dia. E Virgulino pensava na morte que ...

A Travessia

poesia paraibana waldemar jose solha
 
 
 
A lua branca boiava no meio da travessia, no meio do São Francisco, no antepenúltimo dia. E Virgulino pensava na morte que lhe chegava e que bem clara ele via.

Maria, maravilhada, no claro olhava outra vez “Fon-Fon” e a “Noite Ilustrada” que já folheava há um mês: artistas agalegadas, vestidas feito uma fadas, lhe davam embriagues.

E ela disse pra Cila: — Olha essa roupa, que graça! Parece até que foi feita só do vapor da fumaça! Lá nos Estados Unidos é que se fazem vestidos. Aqui é essa desgraça!

Lampião cantava tristonho, sozinho, ao som de seu fole: — Estou bem perto do fim, que a morte em meu peito já bole. queimei, roubei e matei, pra onde vou eu já sei, é só achar quem me esfole.

Maria ergueu sua vista, das fotos pra Virgulino. E, com as olheiras escuras, fez um feroz de felino. O seu batom, no que fala, é sangue em casco de bala, coagulado e ferino:

— Somente vais ter sossego com um trabuco parrudo que te destampe num tiro, arrebentando com tudo! Já disse: vamos embora gozar a vida lá fora, ou, por favor, fique mudo!

Mas ele estava mudado e nem sequer respondia. Seu peito sem coração era uma jaula vazia. Sentindo um roxo por dentro, em que a morte era o centro, ouviu Luiz que dizia:

— Quem vê o cavalo-do-cão naquela andança nervosa, bem preto, brilhando verde, em sua caça horrorosa, te vê numa buraqueira caçando caranguejeira, a morte mais pavorosa.

Vamos pro Mato Grosso co´esses mil contos de réis que tens aí nesse bolso, mais esses tais ouropéis. O ouro enche com gosto duas bacias de rosto: seremos beijados nos pés.

— Acho melhor ir embora – disse também Zé Sereno. Eu sinto que está na hora, que o mundo ficou mais pequeno. Mas digo, e é com acerto, que ainda se escapa do aperto, basta que dês um aceno.

Lampião, no entanto, lhes disse: — Nós vamos pr´aquela grota! Quanto a passar por aperto, deixem de tanta marmota! Se justamente o que falta é apertos nos furos da flauta, mudando o flu desta nota!

A lua imensa boiava no espelho mole do rio, quando um cachorro do bando uivou naquele vazio. Sereno arrupiou-se, Maria persignou-se, Luiz sentiu calafrio.

— Vem vindo gente acolá – foi Zabelê que alertou ao apontar uma barca que todo mundo avistou. Escura e muito esquisita, lá vinha vindo a maldita, o bando se engatilhou.

— Eu vejo um brilho na sombra – o Vinte-Um sussurrou. — Deve de ser uma arma e o Virgulino gritou: — Que arma, coisa nenhuma! Imaginação é a escuma que muito leite entornou!

Não é fuzil nem vincheste, nem parabelo nem faca! Meu nome não é Lampião se essa barca me ataca. Já vejo ali um trambone, pistão e um saxofone... e a minha vista anda fraca!...

Gritando “Quem são vocês?”, o chefe logo se ergueu. — Nós somos só um jazban! – alguém de lá respondeu. — Se é um jazban que vem nisso, valei-me, oh Padre Ciço – Maria foi quem gemeu.

As barcas se encontraram no estrondo oco e profundo que se alastrou pelo rio e por debaixo do mundo.... e Virgulino sentiu, quando Maria sorriu, seu medo ir mais ao fundo:

— Eu dou cinquenta mirréis pra cada um de vocês – foi Lampião quem lhes disse – Gostando, ficou freguês! O grupo, de suspensório, pegou no instrumentório e o mestre contou até três.

Mas quando, nesse porém (que tudo quase explodia num novo frevo, xaxado, num carnaval de alegria) foi tudo subtraído, Lampião sentiu-se traído, em grande melancolia.

— Esse é que é o fox-blu – explica o maestro baiano – De um tal de um Luiz Armestrongue, um nêgo americano. É o que hoje, em todo salão, se dança mais que o baião, no estado pernambucano.

Brilharam em Virgulino as libras de sua testeira. Brilhou um Pedro II e os Deus-te-Guie em fileira. A exposição dos anéis de vários contos de réis reluz na luz derradeira.

Ele vê as montanhas cobertas como de... colcha e lençóis..., a terra transfigurada, o rio com outra voz. Feito se entrasse num sonho, fecha seus olhos, suando, e todos se sentem... mais sós.

E é então que ele diz: Estou morto, não sirvo mais pra esta vida. É um dessufôco e sufôco de origem desconhecida. Sou pé-de-pau que não presta, que o meio da fuloresta... torce, retorce, liquida.

Almocrevei, em menino, para o Delmiro Gouveia. No fox desse jazban, vejo-lhe a morte, e é bem feia: Delmiro todo de branco, levando um tiro no flanco, e é sangue a espirrar da veia!

E vi foi todo o seu povo arretirando-se em massa de onde tinha hospital, além de instrução de graça. De graça a eletricidade, trabalho igual da cidade, e férias, mas veio a desgraça:

é que a linha, lá em Pedra, era uma enorme riqueza, porque barata e mais forte que a concorrente inglesa. O algodão seridó jamais torava ao dar nó, e o fio tinha beleza.

Delmiro mandava em tudo e o desmantelo foi grande. Tombando no tiro duro, não tem ali mais quem mande. As máquinas lhe são quebradas, nas catadupas jogadas, feito se fossem de flandres.

— O fox veio até aqui — ele arremata, mofino – Isso é mais um sinal mandado pelo destino. Tem muito a ver co´a notícia das armas com que a polícia me segue com desatino.

São gringas de trinta tiros, são belgas, americanas, que vêm pegar meu fuzil, ferozes, certas, tiranas. Meu fogo tem vinte anos, comete já seus enganos. As deles são soberanas...

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