Possuir forte convicção de que a ressurreição é intrínseca à própria vida não parece uma ideia plausível à maioria dos mortais. Nem dos “imortais”... Principalmente em meio à diversidade de ideias que ao longo de milênios brotam de reflexões, estudos e filosofias inspirados no saber.
O nascimento, a infância, o amor, as amizades enfeitam a vida, ainda que entremeados por sofrimentos inerentes à própria condição humana. No entanto, mesmo que a morte seja a maior das certezas nossas, o fato inexorável constitui-se há séculos como a mais desafiadora realidade que pulula o imaginário individual e coletivo de todos os povos.
Mas houve, sim, alguém que bem antes de morrer vivificou-se iluminado pela grandeza de sua percepção, da força com que superou imensas dificuldades, e da obra que produziu perante grandes desafios impostos pelo destino: Gustav Mahler. A vastidão do trabalho ao qual se dedicou, com afinco de corpo e espírito, consubstanciou-se em legado de imponderável valor que deixou à posteridade. Um acervo que brotou de profundas crises e vicissitudes de diversas ordens. Familiares, conjugais, de saúde, e sobretudo existenciais.
Os problemas de alcoolismo de seu pai, proprietário de uma taberna em Kalischt (antiga comuna checa) , sob cujos efeitos agredia sua mãe; a morte prematura de seis irmãos, incluindo suicídio; a traição de sua mulher, Alma Schindler, famosa pela beleza, que se envolveu publicamente com o arquiteto Walter Gropius, pondo em ruínas o casamento de quase 10 anos; a doença súbita, seguida de óbito, de sua primeira filha, aos 5 anos, e a cardiopatia da qual padeceu nos últimos anos, estão entre os infortúnios enfrentados por Mahler.
Paradoxalmente, foi exato no auge das piores crises que a criação do compositor alemão mais se aproximou da transcendência e fortaleceu a fé na espiritualidade.
Apesar da morte estar relacionada com o fim de tudo, com a perspectiva niilista cultivada e disseminada por muitos pensadores com afinidades materialistas, há praticamente em todas as religiões a intuição de que a vida não se finda com a extinção do corpo que a terra retorna. Das mais antigas crenças e escrituras, do tempo em que sequer se imaginava o planeta ser redondo, às revelações que a ciência trouxe à lume, a noção de um mundo espiritual permeia-nos a inspiração. A existência de tantos mundos que nossos olhos não veem, energias e vibrações magnéticas a transitar em outras frequências, descobertas sobre propriedades quânticas da matéria, revelações da astrofísica e da cosmologia, dantes nunca imaginadas, consolidam, década após década, a certeza de que “o nada da metafísica não tem mais lugar na Física Moderna”.
Há milênios, a transcendentalidade suscetibiliza a consciência e se revela em linguagens traçadas sob variadas maneiras de expressão, conquanto incapazes de traduzir por completo o sentimento que intimamente nos faz acreditar no espírito. E mesmo convictos de que a morte é um processo biológico que se inicia no dia em que nascemos, sua ocorrência continua para todos uma angustiante verdade.
Embora a ideia de imortalidade não isente de incertezas a maioria, sua concepção é exegese que alimenta a alegria, aduba os sonhos e renova a inspiração que impulsiona grandes obras da arte e da literatura mundial. Pinturas, romances, peças sinfônicas, óperas, cantatas, réquiens, poemas, dos hieróglifos aos trovadores, do medieval ao clássico, do épico ao trivial, perpassam eras a fio entronizando a revivescência de almas meritórias pelos campos elíseos.
A “Ressureição”, segunda sinfonia de Mahler, é um dos grandiosos exemplos do que a criação artística é capaz de produzir e perscrutar acerca da fé na transcendência pós-morte. Neste trabalho a que o compositor se dedicou por 6 anos, toda temática, problemática, dialética, foi literal e meticulosamente orquestrada em estrutura musical perfeita. Cronologicamente tratado, o fatídico ocaso de nossas vidas é nele moldado, desde a temerosa questão em si a toda a alegoria pertinente ao contexto em que se processa.
Proclamado o motivo, Mahler desenvolve-a entoando uma retrospectiva contrapontual do que a vida representa antes, durante e perante o seu fim. Até atingir seu objetivo na conclusão da formidável abordagem que consolida a ufania pretendida: Ressuscitar!
Um cortejo solene e aguerrido foi magnificamente arquitetado no primeiro movimento, a que ele chamou de Totenfeier (marcha fúnebre), anteriormente imaginado como peça única. Só depois, veio a se constituir na introdução de sua segunda sinfonia.
Com acentuada relevância, a cadência grave e marcante refere-se notadamente à defluência do séquito, característica dos funerais, presente tanto em rústicas procissões como em pomposas cerimônias. O cortejo é o que há de mais representativo nas homenagens que se prestam ao corpo morto, a caminho do derradeiro abrigo. Seja envolto em uma simples rede de pano roído ou “confortavelmente” acomodado em um lustroso esquife de ébano.
Mahler não restringe este movimento à definição que lhe deu como subtítulo “Mit durchaus ernstem und feierlichem Ausdruck” (Com expressão séria e solene). Após a introdução acentuada pelo suspense de graves síncopes, entoadas nas cordas baixas, em que o trompete anuncia em tom preludial a seriedade do enredo, a primeira exposição do tema é revestida de nostálgica ternura.
Alguns lampejos de heroísmo fazem-se presentes. Afinal, a morte está historicamente associada à figura mítica do herói, na arte e na literatura clássica, personagem que fermentou a criação de grandes obras que idolatraram corajosos vultos da saga humana.
Mesmo com incisivo espírito de marcha fúnebre, o andamento inicial não dá ênfase à tristeza, nem à desolação que se evidencia em peças congêneres. A imponente beleza musical confere aura de bravura no enfrentamento do enredo. Algumas sutis referências ao Dies Iræ, hino gregoriano cristão secularmente usado nas exéquias, ocorrem em caráter homérico. Este louvor musical de autoria atribuída a Tomás de Celano, no século XIII, foi largamente utilizado em música, teatro, cinema, e até hoje se insere no rito litúrgico de missas e cerimônias tradicionais. Além de óperas e sinfonias, em quase todos os réquiens este hino se incorpora concebido em versáteis feições, cantadas ou orquestradas. Mozart, Berlioz, Dvořák, Britten e Verdi pontuaram o ápice de suas missas de réquiem com referências ao Dies Iræ. No Fausto de Gounod, na Totentanz de Liszt, na “Fantástica” de Berlioz, na Dança Macabra de Saint-Saēn, ele surge em opulentas e criativas variações. Nas produções cinematográficas contemporâneas, como a série “O Senhor dos Anéis” (Tolkien), no musical A Dança dos Vampiros (Jim Steinman), na trilha de O Rei Leão (Elton John e Hans Zimmer), o lutuoso canto é também eminentemente citado.
Mas não é apenas na introdução de sua Ressurreição que Mahler elege o Dies Iræ como um dos ápices sinfônicos desta obra, o que veremos a seguir. Aqui há só uma menção tangencial ao canto, sem fiel explicitude, como acontece posteriormente com grande destaque.
O séquito prossegue alternando-se entre tragédia e lirismo, flui majestosamente caminhando do feérico ao suave, como se escuta no luminoso segundo tema, mas sem se afastar do caráter heróico do prólogo que bem define a sinfonia. Mahler já havia se referido a este movimento como a maneira que encontrou de homenagear o “Titã”, protagonista de sua primeira sinfonia. Definiu-o como “uma meditação exasperada sobre a condição mortal da humanidade”. Em alguns momentos, o autor provoca e indaga: “de que valerá a vida, algo estéril que está condenado a desaparecer”? Questões sobre o porquê de viver, de sofrer, de uma experiência que, no final das contas, é uma “trágica piada”, são exaustivamente formuladas, mas progridem a concluir que existir vale a pena, resposta que se consolida no último movimento.
Em variada tessitura, o movimento harmoniza golpes sonoros, ora sinistros e desditosos, ora altivos e triunfantes, intercedidos por motivos leves e nostálgicos. O que bem reflete pensamentos que eclodem da intimidade daqueles que vivenciam a dura realidade da despedida. Entretanto, em meio aos revezes do destino, há passagens em que a música evoca aspectos felizes comumente possíveis em qualquer existência.
De maneira recorrente, as tensões se ampliam com timbres de fatalismo. Os compassos de marcha são reexpostos ainda mais intrépidos e se encaminham ao desfecho do estóico ritual para então se concluir com resignada serenidade em momentos de calma surpreendente. Na metade da Totenfeier, os ânimos se arrefecem em preparação para o dramático retorno ao argumento inicial. Reexposto o assunto, dá-se o epílogo em que a resignação subitamente se sobrepõe.
Na sequência destas elucubrações existenciais, surgem suaves lembranças do lado poético da vida, astuciosamente desenhadas no segundo movimento. Flashes do saudoso pretérito, eventualmente marcado por instantes de delicadeza e alegria, são narrados por temas simples e bucólicos. Registros que remetem às belezas diante da natureza a bailar entre flores e raios de sol de uma manhã festiva. Silhuetas dançantes afloram ao estilo “Belle Époque” e, na graça do compasso ternário, resgatam doces sonhos que permanecem na memória. A paz da ilusória inocência e o frescor da juventude valsam com leveza de borboletas e pirilampos a reluzir nos pizzicatos e nas derradeiras variações.
Na terceira parte, Mahler propõe referências às armadilhas que se interpõem em nossa caminhada terrena. As ilusões, as tentações, os atrativos fugazes, tudo o que pode nos embotar a visão maior dos significados do ser. O aparente sabor de felicidade que se experimenta na futilidade dos prazeres efêmeros faz-se musicalmente nítido. Frases rodopiam etéreas a descrever as emboscadas que nos espreitam para ofuscar valores que se elevam acima da lépida transitoriedade carnal.
Não há, contudo, seriedade no enfoque sobre os perigos da ilusão referidos neste movimento. A graciosidade com que as melodias dançam, em compasso ternário, servem de alento para os sofrimentos imanentes a qualquer condição humana. Embora apontem para os riscos da vida material, definida como Maya pela filosofia hindu — a grande ilusão dos sentidos — há predominância de gracejos que volitam ritmados em variados timbres.
Depois que este desfile de alegorias atinge o auge, o ambiente apazigua-se com toques de serenidade a prenunciar a chegada da poesia que marca profundamente a sinfonia.
A afinidade de Mahler com a literatura poética é robusta. A frequente presença de poemas em suas obras é uma característica insofismável de sua admiração e de seu talento para escrever. Em algumas obras ele inseriu poemas de sua autoria entre os de poetas de sua admiração.
Mesmo os mais ardorosos fãs do notável compositor nascido na Boêmia do século 19, poucos se atêm, ou até ignoram tais afinidades com a poesia e sua vasta produção poética. Johann Paul Friedrich, Friedrich Klopstock, Goethe, Schiller, Hölderlin, Achim von Arnim, figuram entre os mais cultivados por Mahler, que apontou “Conversas com Goethe”, de Eckermann, como livro favorito. Suas ligações com a literatura têm vários registros na extensa lista de composições corais, como a Canção Triste, que compôs com apenas 20 anos, e obteve grande repercussão, nos vários Lieds, no Ciclos de Canções, na célebre Canção da Terra, e na monumental 8ª Sinfonia (Sinfonia dos Mil), quase toda estruturada na segunda parte do Fausto.
De próprio punho, foram muitas obras poéticas. Entre elas: “Carta para Joseph Steiner”, “Amor Esquecido”, “Veio um raio de sol”, “Mentira”, “Poema Invernal”, “Dança no Verde”, “A canção lamentosa”, “Canções de um Viajante”, “Poema para Richard Wagner”, “Poema de Hamburgo”, “Ruhevoll” (poema escrito para o 3º movimento da 4ª sinfonia), e os “Poemas para Alma Mahler”, dedicados a sua esposa.
Na Ressurreição, ele deixa claro e em alto relevo sua conexão com a poesia, que possui nesta peça um significado visceral. Não apenas pela riqueza melódica descritiva, pelas tempestivas inserções em sua estrutura dramática, mas como razão principal de sua concepção.
No terceiro movimento a poesia aparece apenas musicalmente, nas referências às suas canções “Des Knaben Wunderhorn” (A trompa maravilhosa do menino), em que usou trechos de uma coleção de poemas folclóricos alemães, reunida pelos poetas Achim von Arnim e Clemens Brentano, em três volumes, por volta de 1807, para compor seus Ciclos de Canções, para voz e piano, e para voz e orquestra. Neste andamento, ele transcreve para orquestra o “Sermão de Santo Antônio de Pádua aos peixes”, a oitava das 24 canções. Tal referência reforça a ideia de trazer à tona o alheamento de que somos vítimas diante dos devaneios e dos insidiosos ardis da vida mundana. A escolha desta canção, originalmente para voz e piano, traz implícita metaforicamente a indiferença dos hereges às palavras do santo português, ao preferir pregar para os peixes que o aplaudem aos montes, regozijados. Evidenciando a trivialidade de uma vivência banal capaz de nos afastar de reflexões existenciais mais sábias e profundas.
No período clássico, as sinfonias eram puramente instrumentais e seguiam a estrutura da “forma sonata” (3 ou 4 movimentos). Beethoven rompe esta tradição, não apenas libertando o gênero da rigidez formal, sobretudo a partir da terceira, e chega a inserir um coral de vozes humanas, pela primeira vez, na célebre Nona Sinfonia. A partir de Beethoven, outros compositores se afinaram à ideia e compuseram várias sinfonias corais, como Hector Berlioz, em sua “Romeu e Julieta” — magistral mescla de música e narrativa —; Felix Mendelssohn com a “Sinfonia Cantata”; e Franz Liszt, com duas sinfonias corais.
Já no limiar do século 20, Mahler então consolida a voz como destacada parte de algumas de suas sinfonias e nelas estabelece a poesia como prioridade. O que fluiu facilmente, uma vez que sua habilidade para o “lied” (canção) já se havia lapidado em aplaudidas composições corais. Posteriormente, Dmitri Shostakovich celebra a união do texto com a música sob maestria espetacular.
É no quarto movimento, porém, que a poesia literalmente brilha como um raio de luz e fé, após a dramaticidade abordada nos vários aspectos dos movimentos anteriores. Inicia-se com a canção “Luz Primordial” (Urlicht) que foi originalmente composta por Mahler em 1892, para piano e voz, com excertos da mesma coleção de canções Des Knaben Wunderhorn (A trompa maravilhosa do menino).
Este penúltimo andamento surge como um oásis de transição entre tudo o que se viveu e o que há de vir. A “Luz Primordial” toca a emoção com esperança que se retrata no texto e na bela melodia, agora cantada e orquestrada. É o epicentro em que Mahler pontua com um poema praticamente a metade da obra. Faz o ouvinte respirar compenetrado a refletir sobre os temas antes tão belamente expostos. Nada melhor que a simplicidade do diálogo com uma pequena rosa, a quem os anseios mais íntimos são confessados:
Ó pequena rosa vermelha!
O homem anda tão necessitado!
Encontra-se em sua maior dor!
Como eu gostaria de estar no céu.
Na segunda parte da canção, um pouco mais dramatizada, os versos alçam desejos mais elevados e já traduzem aspirações por um estado de transcendência que nos faça ascender da grande e banal ilusão terrena:
Eu cheguei a um largo caminho
quando um anjo quis me expulsar.
Ah não! Eu não me deixaria ser rejeitado!
Sou de Deus e para Deus voltarei!
O Deus amoroso que me concederá Sua luz,
que me iluminará na vida eterna e bem-aventurada!
Inspirado e motivado pela ideia de transpor para a música de uma grande obra toda sua crença em algo que se eleva acima da vida material, Mahler ainda não havia alcançado a plenitude do que idealizara. A catástase não se realizava na essência, até vivenciar uma espécie de insight durante o funeral de seu grande amigo, maestro e pianista, Hans von Bulow, por quem tinha excelsa admiração. Durante a cerimônia, ao ouvir o hino “Die Auferstehung” (Ode à Ressurreição), do poeta alemão Friedrich Klopstock, entrou em transe súbito, por ter finalmente encontrado a luz para concluir a sua sinfonia, O estado de espírito que experimentou era exatamente o sentimento que traduzia o que buscou por tanto tempo.
A experiência mística resultou na imediata concepção do quinto e último movimento para o qual convergem todas as luzes difundidas nos espectros da música iniciada com a marcha fúnebre, seguida dos dois valsantes Ländlers, hiatizada pelo lirismo da “Luz Primordial”, para explodir na arrebatadora conclusão de tudo a que se propõe a sinfonia: o quinto movimento! O que decerto reúne a expressão máxima da arte, do pensamento, das experiências, de tudo o que configura o glorioso idílio mahleriano acerca da vida, da morte, do sofrimento e da superação, tão bem matizados em sua cristalina imagem da Ressurreição.
O professor mineiro Henrique Autran Dourado, escritor, doutor em Música e Artes Cênicas, graduado no Berklee College of Music e na New England Conservatory of Music, chegou a escrever em um de seus ensaios: “esta obra de Mahler é um chamamento tão poderoso ao espírito que há quem garanta ter sido convertido ao ouvi-la, passando a crer na existência de Deus!”
Quando a poesia do 4º movimento é fenecida delicadamente com a presença das harpas, que tanto caracterizam os adágios de Mahler, estrondeia o fragoroso prólogo com a mesma frase irrompida no clímax do terceiro. A última sessão se denomina “Em tempo de scherzos”, certamente para classificá-la com a ideia de “Graça”. O plural remete à multiplicidade de partes em que se divide. São diversos enunciados entrepausados com declamações que variam em torno do conteúdo.
Após a feérica abertura, selada por trepidantes contrabaixos logo acolhidos por trompas e demais metais, tudo se torna auroreal envolto na doçura das harpas. Ouve-se uma frase de cinco notas ascendentes (sol... dó-ré-mi-fá-sol), um leitmotiv que aflora em toda a extensão da obra, sobretudo no último andamento, e patenteia a proficiência mahleriana para demudar simplicidade em sofisticação. Este pequeno fragmento de cinco notas, sem acidentes, reveste-se com ideia de “chamamento sublime”, algo como a expressão com que Bach intitulou sua 140ª cantata: “Despertemos, uma Voz nos chama! (Wachet auf, ruft uns die Stimme!), sempre presente no tecido sinfônico entre os temas mais importantes, principalmente o extraordinário epílogo que coroa a Ressurreição.
A singela frase emana logo após a abertura do 5º movimento impulsionada por fluídos arpejos, idem ascendentes. A música respira e logo renasce em solos de trompas longínquas que transmutam os tons crepusculares em alvorada, seguida por afável canto de oboé que introduz refinada menção ao Dies Iræ, agora solfejado em dueto com a flauta para dar lugar à primeira aparição do motivo do grande final, entoado por trombones de vara e trompetes. Tudo é costurado com meticulosa harmonia, em ideias que já insinuam o que será aclamado como uma das grandiloquentes finalizações sinfônicas do romantismo tardio. O tema é seriamente reexposto pelos metais, amparado por flautas em pizzicatos que cintilam em uma atmosfera cósmica. Algo sublime principia a se revelar. O cortejo agora não é mais fúnebre. Centelhas luminosas se descortinam no espaço precipitando o clima que pressupõe o luminoso porvir.
Seguindo-se a breve descanso, sopros anunciam a fé antecipando a música que a embalará em um novo poema — Ó glaube! — e a orquestra cresce, sôfrega, para preludiar a mais fulgurante representação sinfônica do famoso hino fúnebre (Dies Iræ), que chega aos poucos, primeiramente conduzido por trompas e trombones de vara, para logo se fundir ao completo conjuntos de metais na exibição do motejo principal da última parte, agora encenado majestosamente em um dos gloriosos ápices da obra.
Uma curta entrepausa convida intenso rufar de tambores para introduzir a última variação do Dies Iræ, poucas vezes concebida com tão espetaculares contornos. É o milagre musical da transmutação de vida em morte. Nesta transcrição, Mahler testifica seu formidável talento ao vestir o lúgubre hino com pompas heróicas e festivas. Como se sua vontade fosse conferir ao fim da vida terrena o irretorquível preâmbulo da Ressurreição: A morte como personagem mitológica capaz de vencer a si própria e abrir as portas do éden bem-aventurado das alturas para o espírito. Paradoxalmente, ele emoldura o que é definido como funesto em um brilhante contexto. Como se a morte se transfigurasse na heroína responsável por sua crença. Após orlar-se em épica vestimenta o hino finalmente se transfigura em marcha eloquente e otimista.
Agora são as hostes celestiais que se emulam a um contexto que deixou de ser fúnebre. Tristeza e alegria se amalgamam e confundem-se na incandescência de um novo alvorecer.
A seguir, tal como Beethoven fez na Nona, há uma retrospectiva de temas anteriores, entremeados com o “fragmento das cinco notas”, e tudo cresce freneticamente para suscitar a imagem de Renascimento total, em um grito conclusivo da orquestra em tutti, logo apaziguado por uma sequência do “leitmotiv de dó a sol”.
Chegou o momento de acordar as forças da Natureza e todo o bucolismo que embeleza a vida do planeta. Voltam os tons de aurora nas trompas e os pássaros atendem ao convite em um belo dueto de flautas para compor a plateia de louvores à iminente anastasia. São eles que abrirão as cortinas para a primeira aparição do coro com o poema de Klopstock, “Ode à Ressurreição”, que fez juz ao nome da sinfonia.
A fácies sacra assume, então, seu lugar de honra. A formação cristã de Mahler vem oportunamente à lume para consagrar a religiosidade como parceira histórica da fé. O coro entra neste último movimento tal como fez Beethoven, sob a mesma atmosfera de júbilo e esperança que a “Ode à Alegria”, poema de Schiller, conferiu à Nona Sinfonia do compatriota de Bonn.
O coro canta à luz do Eclesiastes — ”E o pó volte para a terra como o que era, e o espírito volte a Deus que o deu” — a refletir os traços de auspiciosa entrega do autor:
Ressuscitar... Sim, você vai ressuscitar minhas cinzas, depois de um breve descanso.
Como uma flor a desabrochar do coro, vem a voz da contralto:A vida imortal
Por Quem te chamou
lhe será dada
A estreia do coro se fenece com orquestração, ao legítimo estilo de Mahler, mais uma vez se utilizando do “chamamento” das cinco notas ascendentes, e retoma os versos:
(coro)
Para florescer novamente
você será semeado
O Senhor da colheita
(soprano)
vai recolher
e juntar os ramos
de nós que morremos
E chega a fé, agora nos versos de autoria do próprio Mahler:
(contralto)
Ó, acredita
Meu coração, acredita!
Tu não perderás nada
É teu, sim
Teu, o que desejaste
Teu, o que amaste,
o que conquistaste
Ó acredita,
Tu não nasceste em vão
A seguir com a soprano:
Ó, acredita
Tu não nasceste em vão
Nem em vão foram tua vida
e teu sofrimento
Com o início do tema que marcará o epílogo, o coral introduz o esplêndido dueto que remete ao quarteto de cantores no “Presto da Nona” de Beethoven. A escrita impressiona pelos desafios contrapontísticos que requisitam elevado nível de técnica e interpretação melodramática:
O que foi criado deve perecer
E o que pereceu deve ressuscitar
Pare de temer
Prepare-se para viver
Ó dor que tudo invade
Estarei de livre de ti
Ó morte que a tudo domina
Agora estás dominada
Com as asas que ganhei
Na ardorosa luta do amor
Levantarei voo para a luz
que nenhum olho penetrou
O ápice do poema — letrado e musicado pelo autor — é marcado pela percussão da Gran Cassa e faz explodir o triunfante coral sobreposto à orquestra inteira, robustecida pela sonoridade de um poderoso órgão:
Morrer eu devo para viver!
Morrer eu devo para viver!
Enfim, A Ressurreição!:
Ressuscitar... Sim.
Tu vais ressuscitar, meu coração.
E um instante, tudo o que passou
a Deus! A Deus! A Deus será levado!
Todas as montanhas se erguem, todos os oceanos se agitam, bosques dançam, rios apressam-se a deslizar pelo seio da terra transbordando em lagos e cachoeiras, toda a Natureza se transforma na imensurável plateia que assiste à vastidão cosmovisionária que Mahler consegue plasmar por meio da irretocável deificação com que arremata esta obra prima. É a saudação primorosa que toda a sinfonia presta ao estado de libertação transcendental que reúne impressões artísticas tão magníficas quanto tudo o que se imagina acerca da ressurreição. Na suntuosidade com que ele perfila a paisagem à conclusão de sua monumental sinfonia, está recapitulada toda a força que o fez acreditar na Ressurreição durante sua conturbada e profícua existência. Eis a vida agora premiada, não apenas com a mensagem que resplandece no resultado criativo, mas sobretudo na imortalidade de sua alma plenamente vivificada, ano após ano, década após década, século após século. Onde quer que esta peça seja encenada, Mahler comprovará que a tudo sobreviveria.Ao atingir a façanha de reunir todos seus questionamentos acerca da vida e da morte, cingindo-os à música, poesia, drama, filosofia, existencialismo, fé, esperança e júbilo Mahler não apenas concebeu os paradigmas da ressurreição em magnífica partitura. Ele sublimou a estesia em seu mais elevado significado: o paradisíaco e "eterno retorno” à divina criação que se realiza por meio da Arte. Só assim conseguiu superar tantas perdas e dificuldades impostas pelo fatídico destino e modelar sua vida e sua obra em uma autêntica versão do Mito da Fênix. Resumindo uma realidade que se confirma em Gustav Mahler: “Um verdadeiro artista nunca foge da dor: ele a trata como uma boa companheira”.