Servaes Carpentier tinha 31 anos, em 1630, quando chegou ao Recife nas primeiras levas de neerlandeses e pessoas de outras nacionalidades que foram recrutadas pela Companhia das Índias Ocidentais (West-Indische Compagnie) - WIC, uma empresa comercial que fora constituída por acionistas para, dentre outros objetivos, empreender, em regime de monopólio concedido pelas Províncias Unidas dos Países Baixos, a conquista e a exploração de terras no Nordeste brasileiro.
Nascido em Dordrecht, na Holanda, Servaes Carpentier formara-se em Filosofia pela Universidade de Leiden, depois estudara Medicina e estava clinicando em Ultrech quando foi contratado e nomeado Conselheiro Político pela Companhia neerlandesa para atuar no Brasil, um cargo que tinha funções administrativas e judiciárias. O espírito aventureiro, a perspectiva de ganhos materiais e a presença de familiares em Pernambuco, provavelmente, motivaram Carpentier a participar da expedição aprestada pela Companhia das Índias Ocidentais com destino ao Brasil. O historiador José Antônio Gonsalves de Mello, na sua obra “Tempo dos Flamengos”, considera Servaes Carpentier, “uma das figuras mais interessantes do tempo”.
Ao chegar a Pernambuco, Servaes Carpentier, na condição de Conselheiro Político da WIC, começou a participar diretamente do comando das ações militares que eram empreendidas pelos flamengos na região. Conforme registros de Joannes de Laet, diretor da companhia comercial neerlandesa e que escreveu a “Historia ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes”, Carpentier esteve presente nas três expedições que os holandeses formaram com o objetivo de conquistar a Paraíba.
Em dezembro de 1631, Servaes Carpentier fez parte do comando da primeira investida frustrada dos flamengos à Paraíba, como anotou Joannes de Laet: “Foram nomeados para dirigir essa expedição o tenente-coronel Steyn-Callenfels e os conselheiros politicos Carpentier e van der Haghen”. Carpentier também estava na força batava que, em fevereiro de 1634, tentou, pela segunda vez, novamente sem sucesso, conquistar a Paraíba, conforme o relato de Laet: “indo tambem á terra o Sr.Gijsselingh e Carpentier”. E, ainda pelos registros de Joannes de Laet, Servaes Carpentier era um dos dois Conselheiros Políticos da WIC que participaram da terceira armada que foi aprestada pelos holandeses para a conquista da Paraíba.
Em dezembro de 1634, após as duas fracassadas tentativas anteriores em conquistar a Capitania da Paraíba, os holandeses, afinal, conseguiram dominar as defesas luso-espanholas instaladas na barra do rio Paraíba e, depois, rumaram para a sede da Capitania. Servaes Carpentier estava entre os flamengos que adentraram na Cidade Filipeia por volta do meio-dia na antevéspera do dia de Natal. Os moradores haviam abandonado a cidade e, no relato de Joannes de Laet, “todos haviam fugido e carregado tudo que puderam”. Consolidada a conquista com a ocupação da Cidade de Nossa Senhora das Neves, Servaes Carpentier foi, então, escolhido pelos neerlandeses como o Governador (Diretor, como os batavos chamavam) da Capitania da Paraíba.
Na verdade, a tomada pelos flamengos, no final de 1634, das fortificações da foz do rio Paraíba e da sede da Capitania não foi a primeira ocupação do território paraibano feita pelos holandeses. Dez anos antes, em 1625, uma esquadra batava que retornava de Salvador para a Holanda, após a reconquista da cidade pelas forças ibéricas, fez uma aguada na Baía da Traição para tratar dos doentes da armada. Durante cerca de quarenta dias, os neerlandeses ocuparam o pequeno povoado existente no lugar e fizeram algumas incursões subindo o rio Mamanguape, nas quais receberam combates das forças locais. Num desses embates, foi capturado o soldado holandês Assuerus Corneliszoon que foi levado para a cidade Filipeia, onde ficou preso por cerca de três anos. Ao ser libertado, Assuerus Corneliszoon escreveu um breve relato sobre a Capitania da Paraíba que é um dos primeiros registros neerlandeses sobre a terra paraibana. Na sua narrativa, Corneliszoon deu informações sobre caminhos, fortificações e engenhos da Paraíba e descreveu a Cidade de Nossa Senhora das Neves:
“cidadezinha, que não tem muralha, de perímetro reduzido e poucas casas muito isoladas. Tem conventos de São Francisco, de Nossa Senhora do Carmo, de São Domingos (Nota: incorreu em erro, era da Ordem de São Bento) e algumas igrejinhas e grandes armazéns cobertos de telhas [...] O terreno da cidadezinha é alto, raso no topo, não muito fértil e sem roças. Desde a cidadezinha avistam-se dois engenhos de açúcar ao norte; os outros ficam no interior”.
Depois do relato de Assuerus Corneliszoon, o principal documento batavo sobre a Capitania da Paraíba foi elaborado por Servaes Carpentier. O primeiro governante da Paraíba no período da dominação holandesa apresentou, em 1635, quando ainda estava com menos de um ano no cargo, um relatório que é a mais detalhada descrição que foi feita, até aquele momento, sobre o território paraibano. O relatório de Carpentier foi inserido por Joannes de Laet na sua obra “Historia ou Annaes dos Feitos da Companhia Privilegiada das Indias Occidentaes” e o introduziu como “uma descripção completa da Capitania da Paraíba, conquistada pelos nossos o anno passado, quasi litteralmente, como foi enviada pelo Conselheiro Político Dr. Servacias Carpentier”.
Carpentier inicia o seu relatório apresentando alguns aspectos geográficos da Capitania da Paraíba:
“uma das quatro capitanias do Norte, pela ordem, seguindo-se da costa de Pernambuco para o Norte, a terceira, mas em valor pela sua fertilidade,
commodidade de portos, recifes e especialmente rios, a segunda, é assim denominada por causa do seu rio principal [...] limita-se ao Sul com a capitania de Itamaracá [...] mas bem para o interior circunda aquella capitania e vae se encostar á capitania de Pernambuco, comprehendendo uma grande parte da Grande Matta do Brazil. Tem ao norte a Capitania do Rio Grande [...] a oeste não tem limites certos mas deve estender-se tão longe quanto a fertilidade do solo e outras circunstancias possam attrahir os habitantes a irem lá morar. É regada por dous bellos rios, o Parahyba e o Mamanguape”
A população da Paraíba foi objeto da observação de Carpentier:
“Os habitantes desta capitania, tirando na maior parte os meios para a sua subsistencia da lavoura, residem no campo, e como os engenhos precisam para moerem estar proximos d’agua e dos cannaviaes, assim como de matta que lhes forneça madeira e lenha, acham-se dispersos aqui e acolá e não se encontram aldeias, a não ser que se dê tal nome a um engenho e sem grande impropriedade, pois entre brancos e negros alguns delles contam 70, 80 e 100 moradores [...]
Somente no rio da Parahyba, onde se achava a Camara da Justiça, á qual se juntavam o clero, commerciantes e operarios, há uma pequena cidade [....] era chamada pelos Portuguezes Nossa Senhora das Neves e Philippéa, cujos nomes foram agora trocados pelos nossos para Fredrick-Stadt, em honra a S. A. o Sr. Principe de Orange”.
Somente no rio da Parahyba, onde se achava a Camara da Justiça, á qual se juntavam o clero, commerciantes e operarios, há uma pequena cidade [....] era chamada pelos Portuguezes Nossa Senhora das Neves e Philippéa, cujos nomes foram agora trocados pelos nossos para Fredrick-Stadt, em honra a S. A. o Sr. Principe de Orange”.
A alimentação dos habitantes da Paraíba foi outro ponto que chamou a atenção de Carpentier:
“Entre os alimentos o principal é a mandioca, de cuja raiz se faz a farinha de pau. Os campos em que é cultivada, os Portuguezes chamam roças [...] Figura tambem o maiz (Nota: variedade de milho) ou milho que é moido no pilão [...] ha muitas especies de fructos de plantas rasteiras [...] meloes, melancias, aboboras, tambem batatas [...] Fructos de arvores ha de innumeras especies, como laranjas acidas e dôces, bananas pacova, duas especies de goiabas, mangabas [...] côcos em grande quantidade, cajús em tal quantidade que não se pode dar consumo, pois as mattas estão cheias delles e os indios fazem delles na estação da safra um vinho com que se embebedam”.
Os nativos paraibanos foram, também, tratados no relatório de Servaes Carpentier, devendo aqui ser realçado o fato de que, mesmo depois de meio século do início da colonização da região, a Paraíba continuava sendo, como sempre foi desde tempos imemoriais, a “Terra dos Potiguara” e não o território da nação Tabajara, cujos indígenas, possivelmente, habitavam a área em um grupo muito reduzido:
“Os indios que moram aqui são da tribu dos Petinguares, geralmente menores de altura que os Europeus e tambem não são tão robustos ou trabalhadores. Há nesta capitania sete aldeias, das quaes Pinda-Una (Nota: Pindaúna, no vale do rio Gramame) é a principal, pois tem umas 1.500 almas. As outra tem apenas 300 e menos [...] Andam na maior parte nús; os homens cobrem com uma tanga as partes pudendas e as mulheres camisas de linho grosseiro que os homens ganham trabalhando para os Portuguezes [...] Os Portuguezes consideravam-nos um povo inconstante, infiel e ingrato, no qual não se devia confiar”.
Carpentier relatou, também, as formas de escravidão que existiam na Paraíba:
“Os escravos são em primeiro logar os indios aprisionados pelos Tapuias vendidos ao Portuguezes e os que foram aprisionados na Bahia da Traição (Nota: os portugueses perseguiram brutalmente os Potiguara que haviam colaborado com os holandeses quando a armada batava, esteve, em 1625, na Baía da Traição) [...] Outra especie de escravos são os Tapuias do Maranhão, presos pelos Portuguezes na guerra que lá fizeram e mandados para cá [...] A terceira e maior parte são negros da Africa; especialmente de Angola; essa gente faz todo o serviço da lavoura trabalhando dia e noite, sempre mantidos com muitos açoites”.
A atividade econômica da Capitania da Paraíba foi abordada no relatório de Carpentier:
“Os productos do paiz que servem para o commercio e exportação são principalmente o assucar e a madeira de tinturaria, depois o tabaco, couros, algodão etc. [...] há na Capitania 18 engenhos, dos quaes, uns são movidos a agua e outros a boi e todos estão situados no rio Parahyba [...]
O assucar estando fabricado e encaixotado é conduzido para certos passos ou armazens situados á margem do rio Parahyba, para poder ser facilmente embarcado [...] Todo o assucar que é levado alli toma o competente registo n’um livro, assim como quando sahe de lá [...] O pau brazil é incontestavelmente o segundo producto, que só dá o trabalho de procural-o e cortal-o na matta”.
Servaes Carpentier, após deixar o governo da Paraíba, foi enviado em missão à Holanda, onde permaneceu pouco tempo, tendo retornado para Pernambuco quando da vinda de Maurício de Nassau para o Brasil. Exerceu o cargo de Assessor do Alto Conselho batavo e, depois, segundo o historiador José Antônio Gonsalves de Mello, tornou-se senhor de engenho, “adquiriu o engenho Três Paus e a engenhoca Tracunhaém de Cima, ambos em Goiana”. Carpentier faleceu no Recife aos 46 anos de idade. O assucar estando fabricado e encaixotado é conduzido para certos passos ou armazens situados á margem do rio Parahyba, para poder ser facilmente embarcado [...] Todo o assucar que é levado alli toma o competente registo n’um livro, assim como quando sahe de lá [...] O pau brazil é incontestavelmente o segundo producto, que só dá o trabalho de procural-o e cortal-o na matta”.
O relatório que Servaes Carpentier elaborou, em 1635, sobre a Capitania da Paraíba trata de vários aspectos relevantes para se conhecer a vida no território paraibano naquela época, a exemplo da arquitetura e da construção das habitações urbanas e dos nativos, da fauna, da relação dos indígenas com os europeus, além de informações sobre os rebanhos e os engenhos de açúcar existentes na Capitania. O relatório de Servaes Carpentier é um documento valioso para a História da Paraíba.