Lá pelos anos 70, vez em quando eu aparecia na oficina de cerâmica e ateliê de pintura do Miguel dos Santos – hoje na Nossa Senhora dos Navegantes 429, na época perto da Escola Técnica, no Jaguaribe. Numa dessas, ao passar da área dos quadros para a dos fornos, vi que – acima da porta - a foto do calvo Picasso fora substituída por um retrato de Johann Sebastian Bach e sua cascateante peruca.
- Mudou de padroeiro?
Miguel fez uma dissertação acerca da superioridade do gênio desse alemão sobre o do espanhol e de todos os outros, de todas as artes. Concordei que a Tocata e Fuga em Ré Menor, por exemplo, é... gigantesca, Jesus Alegria dos Homens... magnífico, a Ária na quarta Corda... sublime, mas ele destacou aquilo que considerava o máximo da criação humana – a “Paixão Segundo Mateus” – com o que me estendeu um LP, algo como Die Matthäus-Passion.
- Leve e veja se não tenho razão.
Na manhã seguinte deixei Ione na feira e – como isso não seria demorado –, fiquei no fusca até que ela terminasse as compras. Levara a radiola de pilha e o disco, daí que manivelei, fechando os vidros do carro – abafando os pregões de frutas e verduras - e foi assim que ouvi o solo inicial de violino da ária “Erbarme dich, mein Gott” - “Tem piedade, meu Deus”. Se isso me comoveu, mais ainda me pegou a entrada da bela voz de contralto, no que seria uma intensa, densa lamentação ante a cruz. O mais incrível, no entanto, foi ouvir isso ... naquele ambiente, dentro do carro, vendo o movimento de pedestres e veículos em volta. Bach é um autor amado pelos documentaristas, porque quase toda imagem parece render muito mais, quando têm algo dele em off. E foi assim que vi as pessoas, bem como as manobras dos táxis e camionetas, todos os apetrechos da feira ganharem inesperada e enorme tristeza, com tal trilha sonora.
OK.
No segunda seguinte, durante o expediente no Banco do Brasil, agência-centro de João Pessoa, o Zé Bezerra, com quem eu produzira – mais o povo de Pombal – o primeiro longa paraibano, “O Salário da Morte”, me perguntou se eu não teria alguma ideia para utilizar os filmes Super-8 que ele tinha e que já estavam no fim do prazo de validade.
- Caramba: tenho.
Fomos fazer as externas do curta “Efeito Iôrran” (de “Johann”... Sebastian) na mesma feira, ele com a câmera, eu como único ator em cena, em meu fusca. E rodamos o primeiro take: uma panorâmica entre os feirantes – comerciantes e fregueses – pregões por toda a parte, “Olha a laranja!”, “A tangerina!” “Olha o tomate!”, “Ovos de galinha caipira!”, isso, até que a câmera localizou meu carro estacionado, aproximou-se, ... e lá estou, sozinho, dentro dele, lendo alguma coisa.
O que se seguiu rodamos na garagem do colega, como o meu close, o olhar para a revista “Realidade” - muito popular na época - corte pro enquadramento, de cima de meu ombro, de enorme close enfatuado, de Mussolini, imagem volta pro meu enfado, corte pra minha mão direita pegando uma foto no porta-luvas, eu olhando a cena em que eu e Ione estamos na cerimônia de crisma da filha, enfado de novo, a mão trazendo uma gravação que é inserida no toca-fitas ( em lugar de meu toca-discos ).
Aí fecho os vidros do carro, abafando o som ambiente, o indicador aciona a tecla do play, dá-se meu recuo - em câmera lenta - para o encosto do assento que se inclina, no que se inicia o solo de violino. Close de meu rosto que se inquieta. Detalhe de meus olhos que se abrem, já vermelhos, a voz de contralto começando a cantar o “Erbarme dich” , no que se vê o que eu vejo, na feira: uma viúva fazendo compras, concentrada no que faz, depois meus olhos que se movem para outra direção, para um senhor de óculos fundos-de-garrafa se aproximando, parando, e olhando para um lado e outro, completamente perdido, e – com a continuidade da música, o crescendo de minha angústia e o das pessoas que, até então, jamais me haviam despertado tal compaixão.
Então pego novamente a revista, e o close de Mussolini se repete, agora sob o efeito Iôrran, sem arrogância, mas... funda, profunda tristeza. E, em seguida, eu com Ione e a filha, fazendo algo que nunca imaginamos tivesse sido tão deprimente, nossos sorrisos tão tristes, como se por trás de tudo houvesse apenas completa e indiscriminada mágoa. Deixo revista e foto de lado e me debruço na direção do carro, no que a câmera, de fora, se afasta, a música desaparecendo na zoada crescente da feira.
O curta-metragem foi bater num festival de Super-8 da Air France, em São Paulo. Bezerra – que também concorria com um curta – foi lá, com Ednaldo do Egypto, e me contou o que acompanhei pelos jornais do Sudeste: meu filme - segundo se disse - tinha tudo pra me dar o prêmio , mas aí aconteceu que a ABD – Associação Brasileira de Documentaristas – reagiu ante a hipótese de nenhum de seus associados ser premiado... e tudo se tornou mais um “quase” na minha vida, entre tantos outros.