“O homem que recebeu o poder de viver de acordo com sua própria natureza é o mais rico de todos os homens. Nada o incomoda, nada tem...

Tulipa

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“O homem que recebeu o poder de viver de acordo com sua própria natureza é o mais rico de todos os homens. Nada o incomoda, nada teme. Tudo está bem."
Epicuro

As tardes deste inverno têm sido de nuvens cinzentas, chuva e frio. Há um mês o azul do céu quase não aparece e na árvore diante da minha janela resta apenas uma folha – solitária memória de tempos cheios de cor. Visto um casaco e saio para buscar algo simples que traga conforto frente às notícias que me chegam sobre os amigos distantes. Tanta gente enfrentando a dor com dignidade e coragem. Compro tulipas. Amarelas como pequenos botões de sol. Trouxeram – embaladas em pétalas de seda e ouro –
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Jan Kopřiva
um convite para revestir de beleza a coragem, esse duro metal da nossa armadura interna.

Quando chegaram, estavam fechadas as tulipas, recém-saídas dos bulbos. Em poucos dias abriram-se ao mundo, expandiram as pétalas, envelheceram e morreram. Lentamente curvaram-se em direção ao solo e deixaram cair as macias pétalas sobre a minha mesa de trabalho.

A metáfora desse ciclo tornou quase inevitável a conclusão epicurista. Sem palavra alguma, ensinou-me que se pode encher de graça a vida só por estar no mundo, em simplicidade.

Neste mesmo instante em que escrevo, percebo que no fim de sua curta vida as tulipas se tornaram muito maiores do que eram quando jovens. Abriram-se ao mundo, tornaram-se estrelas, povoando a casa com seus tons vívidos.

Os bulbos já retirei. Estão guardados para a próxima primavera, quando brotarão novas flores. São a herança que me deixaram – a promessa de renovação, a esperança de reconstruir o que está quebrado: nos corpos, nas almas, nos sentimentos.

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Vejo as tulipas expandindo as pétalas como aves prontas a voar e não consigo deixar de pensar que é necessário uma imensa coragem para se viver em plenitude. Estão radiantes as flores na fase final da vida; embora despetaladas algumas, nunca estiveram tão belas. Sua vulnerabilidade enche os olhos com um sentimento de puro encanto.

Logo elas terão desaparecido, deixando no mundo um rastro de boas lembranças. É a lei da impermanência e da doação a nos ensinar sobre gestos de amor.

A lembrança da dor dos meus amigos me volta à mente. Penso no sofrimento, tão democrático por alcançar a todos os humanos, sem exceção.
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Anders Mortensen
Inevitável. Resta-nos aprender a lidar com ele. Encontrar um significado para a existência é o que nos impulsiona a encarar as dificuldades com renovada coragem. As tulipas me sussurram que pode ser algo simples. Na verdade, são flores sem qualquer outra utilidade, a não ser encher de beleza os nossos olhos. É um grande papel a se desempenhar — penso eu — o de embelezar a vida.

Se até as tulipas têm um propósito no mundo, acredito que nós, os ditos racionais, também o temos. Encontrá-lo é a tarefa que nos cabe. Uma tarefa que colocará doses extras de coragem no nosso peito cansado de tantas batalhas.

A mais humilde existência pode se iluminar quando nasce no velho peito cansado um dos mais nobres sentimentos, a gratidão. É recorrente no nosso mundo que, como disse o velho provérbio, o ingrato esqueça mil refeições, mas não esqueça de uma que faltou. Por vezes, basta concentrar-se no que temos, e não no que nos falta, para fazer nascer um sentimento de contentamento. Reservo diariamente um tempo para refletir sobre as bênçãos na minha vida e me descubro muito grata pelas coisas simples que me chegaram. Não as materiais, pois não sou de indulgências excessivas, mas as pequeninas flores do cotidiano nas quais reside a verdadeira felicidade do meu coração.

— publicado originalmente em soniazaghetto.com

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