Não devo ter sentido diferente de minha cronista predileta ao ver a Turquia desabar inteira, não sobre seus irmãos vizinhos, por ambição eslava de riqueza e poder, mas sobre suas próprias carnes e suas próprias almas, como se o céu e a terra se conjugassem contra sua milenar existência.
Depois de repassar, conta por conta, o rosário de lágrimas de sucessivas tragédias, desde as provocadas pelos elementos da natureza bruta, como os vulcões, os tsunamis, às arquitetadas e detonadas pelo bicho homem (que nem bicho é), de sua cátedra aberta e bem pessoal, Ana Adelaide Peixoto se pergunta: “Por que nos comovemos com a tragédia alheia? E por que algumas tragédias longínquas nos tocam mais que a tragédia ao nosso lado? Os estudiosos explicam. Defesa? Mais fácil se emocionar com o que não está nos incomodando de perto?”
Tem sido uma das minhas intrigas, caríssima confrade. Não a tragédia que desaba das fúrias tectônicas dos elementos e que nos colhe como parte deles. Mas a tragédia muda dos que sonham encontrar o pão seco e duro que às vezes aparece no plástico de boca bem laçada na cata do lixo. Sim, tem que ir para o lixo antes que mofe porque as casas onde sobra o pão estão sempre de portas lacradas e super-lacradas à prova de incômodos como os de antigamente, que podiam estirar a mão pelas janelas. É uma das sequelas mínimas imperceptíveis da velha guerra de classe a pretexto de segurança.
Como nasceram ou foram feitos para sofrer esses ribeirinhos dos primeiros rios históricos das nossas cartilhas ginasiais, Tigre e Eufrates, povos milenares que se estraçalham para não ser dominados desde que o pão e o mais da subsistência virou mercadoria!
Não me sai da memória, sempre me atingindo como se fosse agora, a procela infame que devolveu à orla turca, há uns dez anos, a criança que a mesma Turquia rejeitara, recolhida piedosamente por um soldado fora da tropa, reinvestido em sua condição humana. É preciso haver isto para nos emocionar ou comover. Fora disso, restringe-se ao cerebrino, de leve, o absurdo humano de 19 milhões de brasileiros em situação de fome. O mais que o governo pode fazer, sendo Lula, é pôr no prato o bolsa-família, que não chega a ser conquista assegurada num país no qual a lei é hoje e não é amanhã. E como a lei, os homens.
Ivan Bichara, já ex-governador, premiou-me em se aliar a uma das minhas crônicas de “Um sítio que anda comigo -A fome, essa invisível”. Permitam-me transcrever minhas palavras de mais de trinta anos:
“A fome, entre nordestinos, oferece dois motivos para não comover: é corriqueira, sem o menor efeito sísmico, e se manifesta sob mil disfarces, mesmo pintada com a cara de herege. A fome anda, veste, vai à missa, à escola, vagueia entre uma calçada e outra e algumas vezes até responde que vai bem. Em alguns casos põe a bolsinha de lado, borrifa-se de colônias e alfazemas, e em vez de objeto de angustia e revolta, oferece-se como objeto de amor. A palidez do rosto e o langor dos olhos confunde em tons de sensualidade os sintomas do esgotamento. O desmaio da inanição travestido em ânsias de prazer. A lassidão do gozo e da morte confundindo-se./ Quando a fome chega a ser doença não é fome. É avitaminose, distrofia, tísica. E é fácil e institucionalmente enganada: um naco de pão, um punhado de farinha, coisas que enganam o estômago, adiam o óbito e entram no sangue com o mesmo teor de abstração das estatísticas da economia e do planejamento”.
E segue assim, sempre assim...
⏤ Publicado originalmente no Jornal A União ⏤