Contador de causos igual o meu tio Miro, ninguém. Nem meu amigo Zé Laranja é bom proseador como foi esse meu tio, irmão do meu avô Vico. Como perceberam, era na verdade tio de meu pai, mas para mim e meus irmãos era o nosso tio Miro e pronto.
Vez ou outra, descia a serra para resolver alguma pendenga e aproveitava para nos visitar. Chegava em casa sempre de surpresa, com aquele jeito bonachão pedindo dormida. Era sempre uma grande festa. Eu e meu irmão tirávamos no par ou ímpar quem ia ceder a cama, mas não nos importávamos com o resultado da disputa, o que valia mesmo era ter esse nosso tio por lá, porque após o jantar ele sempre começava a contar os seus causos.
Eram causos de onça, de corpo seco, lobisomem, mas tudo com grande encantamento. Ficávamos ali de olhos e ouvidos pregados nas narrativas. Uma grande surpresa ao final da história, o que é essencial às boas prosas, assim como as do tio Miro. Última vez em que vi esse meu tio foi há coisa de uns cinquenta anos, mas noites atrás, algo como uma nuvenzinha benfazeja, invadiu minha alcova e projetou esse tio na tela de minhas melhores recordações. Lá estava ele com aquele chapéu que só tirava do cocuruto para dormir e aquele paletó que não tirava nem para isso. A primeira lembrança foi um causo de onça que vou tentar reproduzir nas linhas que se seguem.
Um tal Tião Belarmino juntou a mulher, seus cinco bacuris e resolveu morar no Itapeva, légua e meia do pico de mesmo nome. Década de 40 do século passado, morar naquelas bandas exigia coragem e determinação. Frio de doer, a uns 2 000 metros de altitude, clima úmido e nada de vizinhos. Pouca gente habitava aquelas brenhas. Gente quase nenhuma, mas onça...Agora, um pouco de Tião.
Nosso amigo cavou trincheiras na Revolução de 32, lá na Campista, à época podia se dizer, nos cafundós de Campos do Jordão. Esteve ali como ordenança de Gavião Gonzaga, prefeito local que comandou um batalhão constitucionalista lotado naquele alto de serra. Devido a esse “patriotismo estadual” recebia uma sinecura do governo paulista. Daí tirava o sustento dos seus. Instalado em casa de pinho que ele mesmo edificara. Fez um cercadinho para um criame de porcos, outro para suas galinhas, patos e marrecos e mais um onde colocou a cabritinha Mimosa e um bode atrevido e sestroso, o Nicanor.
Passado um tempinho, a porca deu cria, as galinhas, as patas e as marrecas estavam botando e até Mimosa estava de cabritinho novo e com o ubre assim de leite. Tudo ia bem até que numa madrugada com o ruço cobrindo a serra ouviu barulho no chiqueiro. Pistola, o cãozinho latiu, mas recuou. Manhãzinha, às primeiras luzes, Tião foi ao quintal e viu o estrago: Pelo menos três leitões haviam sido devorados. Viu o rastro de sangue e mais à frente um restinho de carcaça. A pegada que viu era de onça e sabido como era ainda conjecturou:
— Era uma fêmea.
Mês depois a mesma coisa. Zoada no terreiro, ruço cobrindo a visão, Pistola latindo, mas nada de avançar. De manhã, cadê a porca? Ainda bem que os leitões restantes já estavam desmamados. No chiqueiro sangue que não acabava mais. As pegadas eram de onça. A mesma de mês atrás, o dedo menor da pata esquerda dianteira estava faltando. Claro que era a mesma.
Foi prejuízo grande nos meses que se seguiram: foi Mimosa, mais para frente o cabritinho, aves desapareciam de quatro ou cinco de uma vez, os leitões viraram banquete de onça. Bicho de bom parecer, praticamente só o bode sobrou. Antes que tudo se perdesse, Tião foi procurar ajutório de seu compadre Chico Soldado. Chico era cabo da polícia e todo mundo sabe que cabo de polícia é mais valente do que um major e até do que um marechal.
Chico apareceu de cartucheira 12, dois canos, bornal com queijo, rapadura, garrafa d’água tampada com rolha, munição para uns vinte tiros, facão e coragem para aquela e quantas onças encontrasse. Sol ainda preguiçoso, ele, Tião e mais Garrucha seu cãozinho mais farejador do que um pointer inglês partiram para a jornada. Missão: dar um fim naquela gata assassina.
Tião à frente abrindo picada entre araucárias, quaresmeiras, palma de jerivá, pinho bravo, ipês e arbusto menores. Tirando o ruído do facão silêncio total, até que Garrucha farejou. Afastaram uns gravetos e lá estava a pegada da onça matadeira. Nem meia légua depois encontraram a toca da bichona. Nada da onça. Mas ouviram uns miados. Acenderam a tocha e foram entrando. O que viram? Dois filhotinhos. Chico pegou os bichinhos no colo e disse admirado:
— Compadre essas oncinhas têm dois chifrinhos cada uma. Deus me defenda nunca vi isso.
Mas Tião sabido como era, tinha explicação.
— Essa onça safada cruzou com meu bode.
Tio Miro garantiu que foi isso mesmo. Tio Miro não mentia.