Parado ante o sinal vermelho, na Epitácio, mão direita na direção, olho para o antebraço esquerdo, à luz crua do sol, e vejo a pele c...

Saí da loja me sentindo outro

transito carro rua velhice imprevisibilidade
Parado ante o sinal vermelho, na Epitácio, mão direita na direção, olho para o antebraço esquerdo, à luz crua do sol, e vejo a pele como um pergaminho, papiro fracionado de rugas! E a mão? Manchas que o povo chama de “flores do cemitério”.

O sinal abre, boto o carro em primeira e me lembro de que em 2015, às vésperas da viagem a Paris com Ione, para comemorarmos nossas bodas de ouro, o médico me disse que providenciasse algo a respeito de uma hérnia que acabara de descobrir em mim. “Isso pode estrangular a qualquer momento e você pode morrer por lá” .Outro médico: “Hérnia?! Isso é um músculo que se deformou com a idade.
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Roger Victorino
Mas sua aorta abdominal está com problema. Vá pra um cardiologista correndo, pois pode ter um enfarte a qualquer momento!” O terceiro: “Nada a ver com sua aorta: esse tipo de esclerose é normal na sua idade. Pode viajar em paz”.

E aí – passando para segunda e terceira marchas, acelerando na avenida repleta de carros dos dois lados – me lembro de um apagão no olho esquerdo, perto do natal de quatro, cinco anos atrás. O oftalmologista me exigiu vários exames e me deparei, de repente, sem nenhuma clínica aberta em João Pessoa. “Vá para o Recife, que é urgente”. Aconteceu que deveria devolver, naquele dia, um livro que o Mirabeau Dias me emprestara, liguei-lhe dizendo que surgira um imprevisto e tinha de ir ao Recife, correndo. “Por que?” Expliquei e ele me disse que tinha um cunhado oftalmologista, dono de uma clínica. “Está em Campina, mas vou falar com ele sobre seu caso. Ligue também, daqui a cinco minutos”. Resultado: “Nada de Recife: pode ficar tranquilo: amanhã tudo voltará ao normal. Apareça no meu consultório no começo de janeiro”.

Ao dobrar à esquerda, na Praça da Independência, lembro-me de que tive também algo como uma isquemia, em madrugada de insônia, quando o filho estava com o câncer que acabaria por levá-lo em 2017. Meu problema surgira num primeiro gole de uísque, quando vi que metade direita da face e do crânio tinham ficado insensíveis, formigamento no pé esquerdo. Levantei-me, para ver se fora um AVC. Não fora. Indicada fisioterapia, a moça passara a vir à minha casa até que, de tanto ouvir que não me sentia melhor, disse-me que parássemos a coisa, porque ela tinha mais o que fazer.

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Ezequiel Garrido
Acelerando - sinal verde - na Maximiano Figueiredo, lembro-me de que, décadas atrás senti uma punhalada nas costas, a facada se repetindo no dia seguinte, enquanto dava expediente no Banco do Brasil. "Gases" - me disse o médico, receitando-me Luftal. Viajei com a família para um casamento em Brasília, punhalada lá, outra vez, no dia seguinte ao do casório. ‘Trombo-embolia pulmonar”, disse-me o médico da CASSI, com meus raios-x nas mãos.

Aí o infarto, março de 22, operação, dias vazios, agoniados, de UTI. Depois, covid. Uma tosse frequente quase me arrebentou e, às vezes, desandava em sucessão de espirros violentos.

Vai daí que sonhei que entrava numa loja - não de roupas: de corpos. Comprei o de Sean Connery no primeiro 007 da série, pela bagatela de 3.400 reais. E saí da loja me sentindo outro.

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