Descansou finalmente o pensador. O escritor. O acadêmico. O gestor público. Descansou, como se costuma dizer aqui no Nordeste, após longa enfermidade, o professor José Jackson Carneiro de Carvalho, ex-reitor da Universidade Federal das Paraíba, ex-secretário de Estado da Educação e ex muitas outras coisas relevantes na cena paraibana. Sua partida, aos 82 anos, se não foi surpresa, dado o seu delicado estado de saúde, causou comoção entre os familiares e amigos, face a imensa lacuna que ele deixa entre os que o conheceram e admiraram.
Foi antes de tudo um intelectual, no melhor sentido da palavra. Um “scholar”, como diriam os americanos e europeus. Um homem desde sempre devotado aos livros, ao conhecimento, à cultura. Não nasceu para outra coisa que não as atividades intelectuais, para as leituras, para o ensino, para a escrita. Uma vida, digamos, dedicada às coisas superiores do espírito, sem que isto significasse distanciamento do mundo e das pessoas, pois ele participou intensamente de seu meio e de seu tempo, como bem sabem os que acompanharam, de mais perto ou de mais longe, sua trajetória pessoal e profissional.
Rapazinho, foi estudar na Universidade Gregoriana de Roma, onde bacharelou-se em Teologia em 1963 e conquistou o título de Mestre, também em Teologia, em 1965. Aprendeu línguas, viajou pela Europa, sedimentou sua formação humanística antes de retornar ao Brasil. Aqui, depois de deixar o sacerdócio, iniciou sua vida acadêmica como professor universitário, casou-se com Célia, sua leal companheira de toda a vida e também professora, constituiu família e logo atraiu para si as atenções perseguidoras da ditadura militar, o que o obrigou, como a tantos outros, a deixar a UFPB e ir tentar ganhar a vida noutras paragens. Tempos difíceis.
Reintegrado à universidade e doutorado em Psicologia Escolar pela USP, foi chamado a exercer cargos de direção, para em seguida ser pioneiramente eleito, pelo voto direto da comunidade universitária, reitor da instituição. Essa eleição, coroando sua vida acadêmica, serviu como um verdadeiro desagravo para as agruras anteriormente sofridas, de forma injusta e arbitrária. Antes exercera o cargo de secretário estadual da Educação, praticamente uma espécie de estágio preparatório para a gestão da maior entidade de ensino superior da Paraíba, na qual deixou sua marca inovadora.
Trouxe sempre presente no pensamento e no coração a Caiçara de seu nascimento e primeira infância. A distância física que a vida impôs não lhe afastou dos sentimentos telúricos típicos dos que vêm ao mundo em cidadezinhas pequenas, cenários como que propícios às saudades e às recordações. Mais de uma vez, escutei-o falar sobre o seu chão natal com embevecimento.
Sem nenhum exagero, costumo afirmar que foi um dos maiores intelectuais paraibanos de todos os tempos, para honra de seus contemporâneos. Em qualquer lugar do Brasil ou do mundo, bastariam seus livros sobre a modernidade, sobre Albert Camus, sobre André Malraux e sobre Dostoiévski para assegurar-lhe um lugar de destaque na vida cultural. Deixa, portanto, um invejável legado filosófico e literário, digno do maior respeito e da maior admiração. Foi um homem de letras de verdade. Tudo que conquistou na seara cultural foi por merecimento e por valor pessoal.
Ele pertenceu a uma geração anterior à minha. Mas, com a fundação, por ele, da Academia Paraibana de Filosofia, começamos a nos aproximar e a nos estimar mutuamente. Mistérios da vida. Nos anos imediatos que antecederam sua enfermidade final, convivemos com bastante regularidade e eu tive a oportunidade e a ventura de conhecer-lhe melhor, sua história, seu pensamento e sua grande bagagem cultural. Jamais fomos íntimos, faço questão de ressaltar, sempre mantive para com ele a cerimônia respeitosa que o aluno deve ao mestre, mas isso não impediu a estima recíproca e, para mim, o privilégio de incluí-lo dentre as minhas mais caras amizades, o que, aos poucos e naturalmente, foi abrangendo Célia, como não poderia deixar de ser.
E por falar em Célia, não posso deixar de render à amiga enlutada as maiores homenagens. É uma questão de justiça e de reconhecimento. Pois ela, como é notório, cumpriu belamente até o fim o juramento feito por ocasião das núpcias com Jackson de acompanhá-lo na saúde e na doença, nas alegrias e nas adversidades. Foram quase dez anos de dedicação diuturna, sem trégua. Uma coisa admirável, é voz geral.
Não o vi mais desde que adoeceu. Guardei sua imagem de sempre, a que ficará em minha memória: a cabeleira farta, pouco grisalha, o bigode que compunha seu rosto como uma marca pessoal. Mas não me distanciei; acompanhei-o através das notícias que Célia periodicamente me dava. Foi a maneira possível de fazê-lo presente, independentemente de tudo o mais. Presença e ausência, sabe-se, são fenômenos menos físicos que sentimentais.
Agora, a posteridade tem a palavra. Houve a semeadura e chegou a hora da colheita. O exemplo e a obra estão aí disponíveis para a reverência geral. Torço ardentemente para que o presente e o futuro façam a ele a justiça devida aos justos e aos bons.
Assim seja.