De como meu avô deu um tiro de garrucha no presidente Arthur Bernardes No quesito dinheiro, meu avô,...

O tiro da garrucha

De como meu avô deu um tiro de garrucha
no presidente Arthur Bernardes

No quesito dinheiro, meu avô, o Vico da Matta, era um homem previdente e controlado. Poupava hoje para se garantir nas incertezas do amanhã. Acreditávamos que era meio pão-duro. Não era. Previdente seria o adjetivo mais adequado. Tinha um cuidado danado com o seu dinheiro. Para se ter uma ideia do trato mimoso com aquelas cédulas, não gostava que olhassem o conteúdo de sua carteira e quando precisava abri-la diante de alguém, usava de suas artimanhas para que o interlocutor não olhasse o conteúdo daquela capanga de couro.

Mas, antes de contar do atentado que o título sugere, é relevante dizer que meu avô e seu irmão, o Miro, eram dois mestres na arte de contar causos.
conto causo revolta 1932
GWR Hat
Ali, dizem que as irmãs, Caetana e Generosa, também dominavam essa arte. Só para registrar, isso foi passado às gerações seguintes. Das crias do velho Vico, minhas tias Dalila e Eunice são duas especialistas. Na geração seguinte não me consta que alguém se destacasse, mas na que veio depois, uma cria minha, a Larissa, não negou fogo e é outra danada. Quando vai relatar algum sucedido, parece tia Nice, com o mesmo jeitinho, até nas entonações.

A história que vou esparramar nas linhas seguintes ocorreu em 1932. Completou 90 anos. Eu nem sonhava em nascer, mas nessa família de contadores de causos ninguém ia deixar passar em branco um ato de bravura que levou meu avô a mandar chumbo bem no meio das ventas de Arthur Bernardes.

O velho Vico não gostava daquele sujeito. Governara o Brasil quase sempre em estado de sítio, perseguiu opositores, operários e era um defensor intransigente das oligarquias. Na borralha do fogão a lenha, ouvi meu avô falar dos 18 do Forte, da Coluna Prestes, da Revolução Paulista de 24. Tudo isso aconteceu no governo daquela criatura mal encarada que nem em fotografia aparecia sorrindo.

conto causo revolta 1932
ALESP
Veio então 1932. Paulistas, mato-grossenses, mineiros e até gaúchos resolveram enfrentar o governo autoritário de Vargas que rasgara a Constituição de 1891. Governava sob decretos e já exibia sua vocação de ditador. Quando a luta começou, Rio Grande, Mato Grosso e Minas pularam fora e São Paulo teve que brigar sozinho pela constituição e depois de três meses, de 934 mortos (dizem que foi mais de 2000) São Paulo se rendeu. Mas nesse meio tempo…

Lá no alto da Serra, em Campos do Jordão, a “Revolta” como era tratado o movimento de 32, deixou muita gente com a pulga atrás da orelha. Com medo mesmo, principalmente os varões que tinham imenso receio da convocação. O prefeito local, Gavião Gonzaga, passou a ser a grande autoridade e como dizem, era quem mandava prender e mandava soltar. Era ele quem comandava a guarnição que estava ali para evitar a invasão dos mineiros.

Preparar para combater a turma do “pão de queijo” fazia-se necessário cavar trincheiras. E para fazer esses buracos era preciso gente e o pelotão ali não oferecia braços suficientes. Gavião Gonzaga mandava seus soldados buscar “voluntários” nas próprias casas para que fossem cavar trincheiras lá na Campista, região fronteiriça com Minas. Não só isso, mas me contaram que tinha autoridade para convocar novos recrutas e aumentar seu contingente, se precisasse.

conto causo revolta 1932
Túnel da MantiqueiraALESP
Até que um dia chega uma notícia que abalou a família. “O Miro fora convocado”. Foi um Deus nos acuda. Chegavam notícias que havia gente morrendo que não acabava mais entre Passa Quatro e Cruzeiro naquele túnel que ficava na divisa entre Minas e São Paulo. Já ficaram ali imaginando o nosso Clodomiro fazendo seu mosquetão cuspir balas nos mineiros. Mas poderia ele estar entre as baixas. E então?

Num ímpeto de raiva, meu avô resolveu se vingar de quem tivera levado seu irmão para morrer na Revolta. Mas em quem iria descarregar seu ódio? Então, retirou da carteira uma cédula de vinte mil réis e lá estava Arthur Bernardes com sua foto ilustrando aquela nota. Não teve dúvidas, com lágrimas nos olhos, cheio das valentias, mandou chumbo na cara do ex-presidente.

— Para aprender não levar meu irmão pra morrer na Revolta.

A vítima pouco tinha a ver com os fatos, mas estava na hora errada e no lugar errado. O problema é que as tias, Generosa e Caetana, presenciaram a pantomima e espalharam a notícia para toda família e aquilo virou chacota por décadas. Meu avô dando tiro em dinheiro? Logo ele…

Tio Miro nem sei esteve nos combates, mas sempre que podia, relatava os fatos. Foi dele que ouvi algumas vezes essa bravata de meu avô. Começava sempre em tom de ironia:

— Vou contar como o Vico era valente...

Como já disse, era um grande contador de causos, mas tio Miro não mentia.

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  1. É verdade. Pois ficou claro que SP ficou na memória dos Brasileiros como os defensores constitucionalistas em 9 de julho...

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